Dois Anos de Silêncio: A Dor de Uma Mãe Portuguesa Esquecida Pela Filha
— Mariana, por favor, atende o telefone… — sussurrei para o vazio, com o telemóvel encostado ao ouvido, ouvindo apenas o bip frio da chamada a cair na caixa de correio. Já perdi a conta às vezes que tentei. Dois anos. Dois anos sem ouvir a voz da minha filha, sem um simples “olá mãe”, sem uma mensagem sequer. O silêncio dela pesa mais do que qualquer solidão.
A campainha tocou e estremeci. Por um segundo, o coração disparou — será ela? Mas era só a vizinha, Dona Teresa, com um bolo de laranja ainda quente. Sentei-me com ela à mesa da cozinha, tentando sorrir enquanto o cheiro doce do bolo me fazia lembrar os aniversários da Mariana, quando ela era pequena e eu passava horas a preparar-lhe o bolo preferido. Teresa falava das netas, dos filhos que a visitavam todos os domingos. Eu ouvia, mas sentia-me cada vez mais distante desse mundo.
— Helena, já pensou em lhe escrever uma carta? — sugeriu Teresa, pousando a mão sobre a minha.
— Já escrevi tantas… — respondi, com a voz embargada. — Mas nunca tive resposta.
À noite, deitada na cama, olho para o teto e revejo tudo na minha cabeça. Onde foi que errei? Será que fui demasiado dura? Demasiado exigente? Mariana sempre foi uma rapariga sensível, sonhadora. Queria ser artista, mas eu insisti para que tirasse um curso “a sério”. Lembro-me do dia em que discutimos pela última vez.
— Mãe, não percebes! Eu não quero ser advogada! — gritou ela, com os olhos cheios de lágrimas.
— Mariana, neste país ninguém vive da arte! Precisas de estabilidade! — respondi, tentando protegê-la do mundo cruel lá fora.
— Não preciso que me protejas! Preciso que me aceites! — atirou ela, antes de sair porta fora. Foi a última vez que a vi.
Depois disso vieram os silêncios. Primeiro as chamadas menos frequentes, depois as mensagens secas, até ao completo desaparecimento. No início pensei que era só uma fase. Mas os meses passaram e o vazio tornou-se rotina.
Os vizinhos perguntam por ela. No supermercado, a senhora da caixa pergunta se a Mariana já veio visitar-me. Sorrio e minto: “Está muito ocupada com o trabalho.” Por dentro sinto-me envergonhada, como se tivesse falhado como mãe.
No Natal passado preparei tudo como antigamente: o bacalhau, as rabanadas, até pus o prato extra na mesa. Mas ninguém apareceu. Fiquei sentada à mesa até à meia-noite, olhando para o telemóvel na esperança de uma mensagem. Nada.
As noites são as piores. O silêncio da casa pesa sobre mim como um manto frio. Às vezes ouço passos no corredor e penso que é ela a chegar tarde do trabalho, como nos tempos em que ainda vivia comigo. Mas é só o vento a bater nas janelas.
No outro dia encontrei uma caixa cheia de desenhos antigos da Mariana. Pequenos quadros pintados com aguarelas baratas, cheios de cor e alegria. Sentei-me no chão da sala e chorei como há muito não chorava. Porque não consegui aceitar quem ela era? Porque insisti tanto nos meus medos e tão pouco nos sonhos dela?
A minha irmã Clara liga-me todas as semanas.
— Helena, tens de seguir em frente. Ela é adulta agora.
— Mas eu sou mãe dela… Como é que uma mãe segue em frente quando perde uma filha viva?
Clara suspira do outro lado da linha. Sei que ela não compreende totalmente. Os filhos dela estão sempre por perto.
Um dia decidi ir ao bairro onde sei que Mariana vive agora. Fiquei sentada num banco de jardim em frente ao prédio dela durante horas. Vi pessoas a entrar e sair, ouvi risos vindos das janelas abertas. Mas nunca vi a Mariana. Senti-me ridícula e voltei para casa ainda mais vazia.
Às vezes penso em bater-lhe à porta de surpresa. Mas tenho medo do que possa encontrar: indiferença, raiva ou pior ainda — um olhar vazio de quem já não sente nada por mim.
No centro de saúde dizem-me para procurar ajuda psicológica.
— Dona Helena, há grupos de apoio para pais nesta situação…
Mas eu não quero falar com estranhos sobre isto. Quero apenas ouvir a voz da minha filha outra vez.
Os dias vão passando devagar. Vou ao mercado, converso com os vizinhos, faço tricô para ocupar as mãos e não pensar tanto. Às vezes escrevo cartas à Mariana que nunca envio:
“Querida filha,
Hoje lembrei-me do dia em que foste pela primeira vez à escola… Estavas tão nervosa e eu tão orgulhosa…”
Guardo-as numa gaveta junto à cama. Talvez um dia ela volte e as leia.
Há quem diga que o tempo cura tudo. Mas há dores que só aumentam com o passar dos dias. A ausência dela tornou-se parte de mim — como uma cicatriz invisível.
No outro dia sonhei com ela: vinha ter comigo ao jardim da infância onde costumava ir buscá-la. Abraçava-me e dizia: “Desculpa mãe.” Acordei com lágrimas nos olhos e uma esperança tola no peito.
Sei que errei muito como mãe. Sei que quis protegê-la demais e acabei por afastá-la. Mas será que algum dia ela vai perceber que tudo o que fiz foi por amor? Será que algum dia vai voltar?
Agora fico aqui à espera, entre memórias e silêncios, agarrada ao telemóvel como se fosse uma tábua de salvação.
E pergunto-me: quantas mães portuguesas estarão hoje sentadas à janela à espera de um telefonema dos filhos? Será que algum dia conseguimos perdoar-nos uns aos outros antes que seja tarde demais?