Do Outro Lado da Parede: A Fronteira Que Não Devemos Ultrapassar
— Joana, não aguento mais! — gritou Miguel, atirando a almofada contra o sofá. O som abafado da televisão do vizinho, do outro lado da parede, parecia zombar de nós, como se soubesse que cada decibel era uma faca cravada no nosso sossego.
Eu estava sentada à mesa da cozinha, as mãos trémulas em torno de uma chávena de chá já frio. O relógio marcava quase meia-noite, mas o barulho não dava tréguas. Oiço a voz da Dona Graça, do 2º esquerdo, a rir-se alto com o filho, enquanto arrastam cadeiras e batem portas. O prédio antigo amplifica cada som, cada discussão, cada gargalhada — e cada suspiro de desespero meu.
— Miguel, por favor… — tentei apaziguar — Não vale a pena stressares assim. Amanhã falo com eles outra vez.
Ele virou-se para mim, olhos vermelhos de cansaço e raiva.
— Outra vez? Joana, já falaste dez vezes! Eles não querem saber! Achas que isto é vida? Eu trabalho doze horas por dia para chegar a casa e não conseguir descansar?
O silêncio caiu entre nós, pesado. Senti-me pequena, impotente. Não era só o barulho — era o que ele fazia connosco. O nosso casamento, outrora cúmplice e apaixonado, agora era feito de silêncios cortantes e discussões sussurradas para não darmos ainda mais motivos aos vizinhos.
Lembro-me do dia em que nos mudámos para aqui. Era primavera, Lisboa cheirava a jacarandás e esperança. O apartamento era pequeno mas luminoso, com vista para o Tejo ao longe. Sonhámos com jantares a dois na varanda, domingos preguiçosos na cama, talvez um filho no futuro. Mas bastaram poucas semanas para percebermos que as paredes finas não guardavam segredos — nem os nossos, nem os dos outros.
A primeira vez que bati à porta da Dona Graça foi com um sorriso tímido.
— Boa tarde! Desculpe incomodar… É só que o som da televisão chega muito alto ao nosso lado. Será que podia baixar um bocadinho?
Ela olhou-me de cima a baixo, olhos frios.
— Minha menina, sempre foi assim neste prédio. Se não gosta, mude-se.
Fiquei sem palavras. Voltei para casa com o coração apertado e lágrimas nos olhos. Miguel tentou animar-me:
— Não ligues. Vamos habituar-nos.
Mas não nos habituámos. Pelo contrário: cada noite mal dormida era um prego no caixão da nossa paciência.
Com o tempo, os conflitos multiplicaram-se. O filho da Dona Graça começou a trazer amigos para festas até de madrugada. Uma vez, Miguel perdeu a cabeça e bateu à porta deles às três da manhã.
— Isto é uma falta de respeito! — gritou ele.
O rapaz riu-se na cara dele:
— Isto aqui não é um convento! Se querem silêncio vão para o campo!
A partir daí começaram as pequenas vinganças: lixo deixado à porta do nosso apartamento, risos maldosos quando passávamos nas escadas, olhares de desprezo na reunião de condomínio.
Os meus pais diziam-me para ter calma:
— Joana, não te metas em confusões. A vida é feita de cedências.
Mas eu sentia-me cada vez mais sufocada. O Miguel começou a chegar mais tarde a casa, inventando horas extra no trabalho só para evitar o ambiente pesado. Eu comecei a ter insónias, ataques de ansiedade. O nosso sonho de família parecia desmoronar-se.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre o barulho e sobre quem devia ceder — se nós ou eles — sentei-me no chão da casa de banho e chorei como há muito não chorava.
“Será que sou eu o problema? Será que exijo demais?”
No dia seguinte, decidi procurar ajuda. Falei com a administração do prédio, com a polícia municipal — todos me diziam o mesmo:
— Tem de haver diálogo entre vizinhos. Procure resolver amigavelmente.
Mas como dialogar com quem não quer ouvir?
O Miguel começou a falar em mudar de casa. Eu resistia: tínhamos investido tudo ali, era o nosso lar! Mas ele estava exausto.
— Joana, eu amo-te… mas não posso viver assim. Isto está a destruir-nos.
As palavras dele ecoaram em mim durante dias. Comecei a reparar como já não ríamos juntos, como evitávamos tocar-nos, como cada um se fechava no seu mundo para não explodir.
Uma tarde chuvosa de novembro, recebi uma mensagem da minha mãe:
— O teu pai caiu outra vez. Precisas vir cá.
Fui até Almada para ajudar nos cuidados dele. Lá em casa dos meus pais, tudo parecia mais calmo — mesmo com os problemas deles, havia silêncio à noite. Senti inveja daquela paz simples.
Quando voltei a Lisboa, encontrei Miguel sentado na sala às escuras.
— Joana… eu vou sair de casa por uns tempos. Preciso pensar.
O chão fugiu-me dos pés. Tentei agarrá-lo:
— Por favor… Não me deixes sozinha nisto!
Ele afastou-se:
— Não és tu… É isto tudo. Eu já não sei quem sou aqui dentro.
Fiquei sozinha naquele apartamento que já não era um lar. As noites tornaram-se ainda mais longas; o barulho dos vizinhos agora misturava-se com o eco da minha solidão.
Comecei a escrever cartas que nunca enviei à Dona Graça e ao filho dela. Escrevia tudo o que sentia: raiva, tristeza, vontade de fugir dali ou de gritar até alguém ouvir.
Um dia cruzei-me com ela nas escadas. Olhou-me nos olhos e disse:
— Está magra… Isso é falta de alegria na vida.
Quis responder-lhe tudo o que me ia na alma mas limitei-me a sorrir amarelo e subir as escadas apressada.
O Miguel acabou por voltar umas semanas depois. Sentámo-nos frente a frente na cozinha onde tudo começou.
— E agora? — perguntei-lhe.
Ele suspirou:
— Não sei… Mas talvez seja altura de aceitarmos que há batalhas que não podemos vencer sozinhos.
Decidimos procurar outro apartamento — mais longe do centro, mais pequeno talvez, mas onde pudéssemos recomeçar sem fantasmas nem paredes demasiado finas.
No dia em que fizemos as malas, olhei pela última vez para aquela sala cheia de ecos do que fomos e do que nunca conseguimos ser ali dentro.
Agora escrevo esta história porque sei que muitos vivem prisioneiros do medo de reclamar ou do receio de serem vistos como conflituosos. Mas até onde devemos ir para manter a paz? E quando é que calar é perder quem somos?
Será que vale mesmo a pena sacrificar o nosso bem-estar pelo medo do confronto? Ou será que só encontramos paz quando aprendemos a defender os nossos limites?