Dividir o Frigorífico: O Dia em que a Minha Sogra Gritou Comigo
— Achas mesmo que isto é normal, Mariana? — A voz da Dona Lurdes ecoou pela cozinha, carregada de uma indignação que parecia maior do que o próprio espaço entre nós.
Eu estava de costas para ela, a tentar arrumar as compras no frigorífico, enquanto o Tomás, o meu filho de três anos, puxava a minha saia com as mãos sujas de bolacha. O cheiro do café queimado misturava-se com o perfume forte da minha sogra, e eu sentia o suor a escorrer-me pelas costas. Respirei fundo antes de responder.
— Só pensei que, se cada um tivesse uma prateleira, talvez fosse mais fácil organizar as coisas. Assim não se estragava comida e ninguém mexia no que não devia… — tentei explicar, mas a minha voz saiu mais baixa do que queria.
O meu marido, Rui, fingia ler o jornal na sala, mas eu sabia que ele ouvia cada palavra. Desde que viemos viver para casa da mãe dele, há três anos, ele tornou-se especialista em desaparecer sempre que sentia tensão no ar. Não o culpo. Eu própria já não sei como lidar com esta rotina de pequenos conflitos.
A verdade é que nunca quis viver aqui. Quando engravidei do Tomás, achámos que seria temporário. O Rui perdeu o emprego na construção civil e eu, professora de Português a recibos verdes, não tinha contrato nem estabilidade. A Dona Lurdes abriu-nos as portas da casa dela em Almada, mas desde o início deixou claro que era a casa dela, as regras dela.
No início tentei ser grata. Ajudava nas limpezas, fazia o jantar, cuidava do Tomás e ainda dava explicações a miúdos do bairro para ganhar uns trocos. Mas a cada semana sentia-me mais uma intrusa do que uma nora. Pequenas coisas — como a forma de dobrar as toalhas ou de temperar a sopa — tornavam-se discussões intermináveis.
Hoje foi o frigorífico. Ontem foi o detergente da loiça. Amanhã será outra coisa qualquer.
— Mariana, na minha casa sempre se fez assim! — exclamou ela, batendo com força a porta do frigorífico. — Não preciso de ninguém a ensinar-me como organizar a minha cozinha!
O Tomás começou a chorar. Peguei nele ao colo e tentei acalmá-lo, mas sentia-me tão perdida quanto ele. Olhei para o Rui à espera de apoio, mas ele continuava imóvel atrás do jornal.
— Mãe… — arrisquei, usando pela primeira vez aquele termo para me referir à Dona Lurdes. — Eu só queria evitar confusões. Ontem desapareceu o iogurte do Tomás e ele ficou sem lanche…
Ela bufou.
— Se calhar foi o teu marido que comeu! Ou então foste tu que te esqueceste onde puseste! Aqui ninguém mexe nas coisas dos outros!
Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. Não era só pelo iogurte. Era por tudo: por não ter privacidade, por não poder criar o meu filho como quero, por sentir que nunca pertenço verdadeiramente aqui.
Naquela noite, depois de deitar o Tomás, sentei-me na varanda com o Rui.
— Não aguento mais isto — confessei-lhe em voz baixa. — Sinto-me uma estranha na nossa própria vida.
Ele olhou para mim com olhos cansados.
— Achas que eu não sinto o mesmo? Mas onde é que vamos arranjar dinheiro para sair daqui? Já viste as rendas em Lisboa? Mesmo em Almada está tudo impossível…
Ficámos em silêncio. O som dos carros na rua misturava-se com os gritos abafados da televisão da Dona Lurdes.
No dia seguinte acordei cedo para preparar o pequeno-almoço antes de todos. Queria evitar mais discussões. Mas quando abri o frigorífico vi que alguém tinha mudado tudo de sítio: os meus iogurtes estavam atrás das garrafas de vinho da sogra, os legumes do Tomás misturados com os enchidos dela.
Senti um nó no estômago. Era como se ela me dissesse: “Aqui mando eu”.
Durante semanas tentei ignorar. Fingia não ver os olhares de desdém quando lavava a loiça “mal”, ou quando deixava brinquedos do Tomás na sala. Mas tudo se acumulava dentro de mim como uma panela de pressão prestes a explodir.
Um sábado à tarde, depois de mais uma discussão sobre quem usou os ovos para fazer bolo sem avisar, perdi a cabeça.
— Já chega! — gritei, surpreendendo até a mim própria. — Não aguento mais viver assim! Não sou tua empregada nem tua hóspede! Quero respeito!
A Dona Lurdes ficou vermelha como nunca a tinha visto.
— Se não gostas, tens bom remédio! A porta está aberta!
O Rui correu para nos separar. O Tomás chorava na sala.
Nesse dia fiz as malas e fui para casa da minha mãe em Setúbal durante uma semana. O Rui ficou com a mãe dele porque não podia faltar ao trabalho novo que finalmente arranjara numa fábrica.
Na casa da minha mãe senti-me aliviada e culpada ao mesmo tempo. Ela acolheu-me sem perguntas, mas percebi nos olhos dela o medo de que eu nunca conseguisse sair daquela situação.
O Rui ligava todas as noites. Dizia que sentia a minha falta, que a mãe estava mais calma sem mim lá em casa, mas também dizia que não sabia como resolver isto.
Quando voltei, tentei falar com a Dona Lurdes. Disse-lhe que queria paz para todos e pedi desculpa pelo tom da discussão. Ela aceitou as desculpas mas deixou claro:
— Mariana, esta é a minha casa. Enquanto cá estiveres, fazes como eu digo.
Desde então vivo em modo automático. Evito conflitos, faço tudo para não incomodar ninguém e guardo os meus sonhos numa gaveta fechada à chave.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem assim em Portugal? Quantas famílias vivem presas umas às outras por falta de dinheiro ou de alternativas? Será justo sacrificar tanto por um teto?
E vocês? Já passaram por algo assim? Até onde iriam para manter a paz numa família?