Disse à minha nora que não voltaria mais: a história de uma avó portuguesa entre o amor e o limite
— Dona Lurdes, pode passar aqui amanhã às sete? Preciso sair cedo para o trabalho — a voz da minha nora, Andreia, soou seca ao telefone, como se fosse uma ordem e não um pedido. Senti um aperto no peito. Olhei para o relógio: eram quase dez da noite. Eu já estava deitada, os ossos cansados depois de um dia inteiro a correr atrás do pequeno Tomás.
Fechei os olhos e respirei fundo. “Será que ela não percebe que também tenho vida? Que não sou só avó, mas mulher, amiga, vizinha?” — pensei, sentindo uma mistura de tristeza e raiva. Desde que o Tomás nasceu, há três anos, a minha rotina mudou completamente. No início, era só para ajudar um bocadinho — “só umas horas por semana, mãe”, dizia o meu filho Miguel. Mas as horas tornaram-se dias inteiros. E os dias, semanas.
No começo, eu até gostava. O cheirinho do Tomás, as gargalhadas dele quando eu fazia caretas, os olhinhos brilhantes quando lhe contava histórias da minha infância em Viseu. Mas com o tempo, Andreia começou a pedir mais e mais. Nunca um obrigado. Nunca um “como está, Dona Lurdes?”. Só listas de tarefas: dar banho, fazer sopa, passar a ferro as roupinhas, arrumar brinquedos.
Uma tarde, enquanto dobrava a roupa do Tomás, ouvi Andreia ao telefone na sala:
— Pois, tenho sorte que a sogra faz tudo cá em casa. Nem preciso de empregada! — disse ela, rindo-se.
Senti-me pequena. Invisível. Como se todo o meu amor fosse apenas mão-de-obra barata.
Quando Miguel chegou do trabalho nesse dia, tentei falar com ele:
— Filho, achas que podiam arranjar alguém para ajudar? Eu já não tenho tanta força…
Ele interrompeu-me:
— Oh mãe, a Andreia já tem tanto stress no trabalho… E tu és tão boa com o Tomás! Ele adora-te.
Fiquei calada. Não queria ser um peso. Sempre me ensinaram que mãe é para dar sem esperar nada em troca. Mas à noite, sozinha na minha cama fria, chorei baixinho. Senti-me usada.
Os dias passaram e a rotina tornou-se insuportável. Andreia começou a sair mais cedo e chegar mais tarde. Às vezes nem via o Tomás acordado. Eu dava-lhe banho, dava-lhe jantar, punha-o a dormir. Quando ela chegava, limitava-se a perguntar:
— Ele já dorme? — e ia para o quarto mexer no telemóvel.
Uma manhã, ao chegar à casa deles, encontrei Andreia à porta com uma mala.
— Vou a Lisboa em trabalho. Volto só daqui a dois dias. O Miguel vai chegar tarde hoje e amanhã também. Fica com o Tomás.
— Dois dias?! — perguntei, atónita.
— Sim, Dona Lurdes. Não se preocupe, deixei comida feita no frigorífico — disse ela, já a descer as escadas.
Senti-me presa. Como se tivesse sido apanhada numa armadilha da qual não conseguia sair.
Nessa noite, enquanto embalava o Tomás no colo porque ele chorava pela mãe, olhei para ele e pensei: “Será que estou a fazer bem? Será que estou a ensinar-lhe que amor é sacrificar-se até desaparecer?”
Quando Andreia voltou de Lisboa, nem um obrigado ouvi. Só perguntou se havia roupa lavada para ela levar para o ginásio.
Nesse momento, algo dentro de mim partiu-se.
No dia seguinte, sentei-me à mesa da cozinha com Miguel e Andreia.
— Preciso falar convosco — disse eu, com a voz trémula mas firme.
Miguel olhou para mim desconfiado. Andreia nem levantou os olhos do telemóvel.
— Eu gosto muito do Tomás. Ele é uma bênção na minha vida. Mas não posso continuar assim. Estou cansada. Tenho direito à minha vida também.
Andreia bufou:
— Se não quer ajudar mais, diga logo! Não precisamos de dramas.
Miguel tentou acalmar:
— Mãe… calma… A Andreia está cansada…
— E eu? — perguntei eu, sentindo as lágrimas nos olhos. — Eu também estou cansada! Sinto-me usada nesta casa! Não sou vossa empregada!
O silêncio caiu pesado na cozinha. O relógio fazia tic-tac alto demais.
Andreia levantou-se:
— Então arranjamos outra pessoa. Não se preocupe.
Miguel ficou calado. Olhou para mim com tristeza nos olhos.
Saí dali com o coração apertado mas sentindo-me finalmente livre.
Nos dias seguintes, senti falta do Tomás — das suas mãozinhas pequenas nas minhas, do seu cheiro doce ao acordar. Mas também senti alívio por poder tomar o pequeno-almoço devagar, ir ao café com as amigas da vizinhança, cuidar das minhas plantas na varanda.
Uma tarde, Miguel apareceu à minha porta com Tomás ao colo.
— Mãe… desculpa — disse ele baixinho. — Não percebi o quanto te estávamos a pedir… A Andreia está zangada contigo mas… eu percebo-te agora.
Peguei no Tomás ao colo e ele sorriu para mim:
— Avó!
Chorei ali mesmo na entrada de casa.
Miguel ficou um bocado comigo e conversámos como há muito não fazíamos. Falámos das saudades da infância dele em Viseu, dos tempos em que eu também era filha e via a minha mãe ser explorada pelos irmãos mais velhos.
— Não quero repetir isso contigo — disse ele.
A partir desse dia, comecei a ver o Tomás de outra forma: como avó e não como ama ou empregada. Passei a ir buscá-lo ao parque aos fins de semana ou levá-lo ao jardim zoológico quando me apetecia — não porque era obrigação mas porque era prazer.
Andreia manteve-se fria durante meses. Só me ligava quando precisava de algo urgente. Mas eu aprendi a dizer não sem culpa.
Hoje olho para trás e penso: quantas mulheres portuguesas vivem assim? Quantas avós são tratadas como criadas disfarçadas de familiares? Quantas mães se esquecem de si próprias por medo de serem chamadas de egoístas?
Às vezes ainda sinto falta do tempo em que Tomás era só meu durante todo o dia… mas agora sei que amor não é anulação. Amor é também saber pôr limites.
E vocês? Já sentiram que vos pedem demais só porque são família? Até onde vai o nosso dever – e onde começa o nosso direito de sermos respeitadas?