Dida António e Eu: Quando o Cuidado se Torna Salvação

— Não posso mais, Sofia. Precisas mesmo de vir cá. O avô António já não me ouve, não me respeita, e eu estou a chegar ao limite. — A voz da Mariana tremia do outro lado da linha, misturada com o som abafado de pratos e talheres, como se estivesse a arrumar a cozinha enquanto tentava não chorar.

Fiquei em silêncio, o telemóvel quente na mão. O meu coração batia rápido, não só pela urgência na voz dela, mas porque eu sabia que este momento ia chegar. O nosso avô António, viúvo há cinco anos, sempre fora um homem de rotinas rígidas e opiniões fortes. Desde que a avó Maria partiu, ele foi-se fechando cada vez mais no seu mundo, e a Mariana, que vivia na mesma aldeia, ficou com o peso dos cuidados. Eu, em Lisboa, arranjava sempre desculpas: o trabalho, o trânsito, a minha vida. Mas agora, não havia como fugir.

— Sofia, por favor. — A Mariana insistiu. — Ele já não come direito, esquece-se das coisas, e ontem caiu no quintal. Eu não consigo estar sempre aqui. Tenho os miúdos, o trabalho…

Suspirei fundo. — Eu vou. Dou um jeito. — Disse, sem saber bem como iria encaixar aquilo na minha vida caótica.

No dia seguinte, fiz a mala a correr. O comboio para o Norte parecia mais lento do que nunca. Olhava pela janela e via os campos a passar, lembrando-me dos verões passados na casa dos avós, do cheiro a pão quente e do som da rádio antiga na cozinha. Quando cheguei à aldeia, a Mariana esperava-me à porta, com olheiras profundas e um sorriso cansado.

— Obrigada, mana. — Abraçou-me com força. — Ele está lá dentro. Hoje está num dos dias maus.

Entrei devagar. O avô António estava sentado à mesa da cozinha, a olhar para uma chávena de café frio. O cabelo branco despenteado, a camisa abotoada de forma errada. Quando me viu, franziu o sobrolho.

— O que é que tu fazes aqui? — perguntou, seco.

— Vim ajudar-te, avô. — Sentei-me à frente dele, tentando sorrir.

— Não preciso de ajuda nenhuma. — Respondeu, afastando a chávena.

Olhei para a Mariana, que encolheu os ombros. — Ele tem dias assim. — murmurou.

A primeira semana foi um inferno. O avô recusava-se a tomar banho, escondia os medicamentos, resmungava por tudo e por nada. Uma vez, atirou-me com uma maçã quando tentei convencê-lo a sair ao jardim.

— Não sou nenhum inválido! — gritou. — Não preciso de babysitter!

À noite, chorava baixinho no quarto de hóspedes, sentindo-me inútil e culpada. Lembrei-me das vezes em que ele me levava à escola de bicicleta, das histórias que inventava para me adormecer. Como é que aquele homem forte se tinha tornado isto?

Certo dia, acordei com barulho no quintal. Espreitei pela janela e vi o avô de joelhos na terra, a tentar arrancar ervas daninhas do canteiro da avó. Corri para fora.

— Avô! Vai magoar-se!

Ele olhou para mim, os olhos cheios de lágrimas. — A tua avó gostava tanto destas flores… Eu não quero que morram.

Sentei-me ao lado dele, sentindo a terra húmida nas mãos. — Então vamos cuidar delas juntos.

Foi assim que começou a nossa rotina. Todas as manhãs, íamos ao jardim. Ele ensinava-me a distinguir as plantas boas das daninhas, contava-me histórias da infância dele, dos tempos difíceis da guerra colonial, das festas da aldeia. Aos poucos, foi-se abrindo. Um dia, confidenciou-me:

— Sinto falta dela todos os dias. Às vezes falo sozinho, como se ela ainda estivesse aqui.

Apertei-lhe a mão. — Eu também sinto falta da avó.

Com o tempo, o avô começou a aceitar melhor a minha presença. Deixou-me ajudá-lo a tomar banho, a escolher a roupa. Às vezes zangava-se, outras vezes ria-se das minhas tentativas desajeitadas de cozinhar arroz de pato.

— A tua avó fazia isto muito melhor. — dizia, mas com um brilho nos olhos.

A Mariana vinha visitar-nos ao fim de semana. Notava-se que estava mais aliviada, mas também um pouco magoada por eu ter conseguido aquilo que ela não conseguira: fazer o avô confiar de novo.

— Não sei como consegues. — disse-me um dia, enquanto lavávamos a loiça. — Comigo ele só gritava.

— Talvez seja porque não sou eu que estou sempre aqui. — respondi, sentindo uma pontada de culpa.

Mas nem tudo eram rosas. Uma noite, o avô desapareceu. Dei por falta dele quando fui ao quarto e encontrei a cama vazia. Corri pela casa, pelo quintal, pela rua deserta da aldeia. O coração quase me saltava do peito. Finalmente, encontrei-o junto ao portão do cemitério, sentado num banco.

— Avô! O que está aqui a fazer?

Ele olhou para mim, perdido. — Vim ver a tua avó. Mas não me lembro do caminho para casa.

Abracei-o com força. — Eu levo-o. Sempre que quiser vir cá, eu venho consigo.

A partir desse dia, comecei a perceber que o avô estava a perder-se aos poucos. Os esquecimentos tornaram-se mais frequentes. Às vezes não sabia quem eu era. Noutras, chamava-me Maria, como se eu fosse a avó.

Falei com a Mariana sobre isso. — Temos de pensar no futuro. Talvez precise de cuidados mais especializados.

Ela abanou a cabeça. — Não temos dinheiro para um lar decente. E ele nunca aceitaria sair daqui.

Senti-me esmagada pelo peso da responsabilidade. O trabalho em Lisboa estava à espera, os meus amigos perguntavam quando voltava. Mas não conseguia abandonar o avô. Havia algo naquela rotina simples — o cheiro da terra molhada, o som da rádio antiga, o riso dele quando conseguia lembrar-se de uma piada — que me fazia sentir viva de novo.

Um dia, durante o almoço, o avô olhou para mim com uma lucidez rara.

— Obrigado, Sofia. Por estares aqui. Sei que não é fácil. Mas tu devolveste-me um bocadinho da Maria.

As lágrimas correram-me pela cara. — Eu é que agradeço, avô. Por me mostrares o que é realmente importante.

O verão passou depressa. O avô foi piorando. Houve dias em que gritava comigo, chamava-me nomes, dizia que eu era uma estranha. Noutras manhãs, segurava-me a mão e pedia desculpa por tudo.

A Mariana e eu discutimos várias vezes. Ela queria que eu voltasse para Lisboa, dizia que estava a sacrificar demasiado. Eu gritava-lhe que ela nunca tinha entendido o avô como eu. Chorámos as duas, abraçámo-nos, prometemos fazer melhor.

No último dia do verão, o avô adormeceu no jardim, debaixo da macieira. Quando fui chamá-lo para jantar, percebi logo pelo silêncio que algo estava diferente. Sentei-me ao lado dele, segurei-lhe a mão fria e chorei como nunca tinha chorado.

O funeral foi simples, como ele queria. A aldeia inteira apareceu. A Mariana e eu ficámos juntas, em silêncio, sentindo o vazio enorme que ele deixou.

Agora, meses depois, olho para o jardim e vejo as flores da avó a crescerem fortes. Voltei para Lisboa, mas trago comigo tudo o que aprendi naquele verão: sobre amor, sacrifício e perdão.

Às vezes pergunto-me: quantos de nós fogem das suas raízes até serem chamados de volta pelo amor? E será que algum dia conseguimos retribuir tudo o que recebemos daqueles que nos criaram?