Dezoito anos de café e silêncio: A verdade que descobri quando o senhor António desapareceu
— Outra bica, por favor, Maria. E vê se hoje não está tão amarga como ontem.
A voz do senhor António cortava o ar abafado do café como uma navalha. Eu já sabia que ele ia reclamar do café, do calor, da televisão demasiado alta ou do cheiro a peixe vindo da cozinha. Durante dezoito anos, todas as manhãs, às oito em ponto, ele sentava-se sempre na mesma mesa, junto à janela, com o olhar perdido na rua e o chapéu pousado ao lado da chávena. Nunca sorria. Nunca dizia obrigado. E eu, Maria, filha do dono do Café Central, aprendi a servir-lhe o café com a mesma indiferença com que ele me olhava.
Mas naquele dia, enquanto lhe pousava a chávena à frente, reparei nas suas mãos. Tremiam mais do que o habitual. Por um segundo, hesitei em perguntar se estava tudo bem. Mas calei-me. O silêncio entre nós era tão antigo quanto as paredes do café.
O meu pai, Joaquim, sempre me dizia:
— Não te metas na vida dos outros, Maria. O senhor António é assim mesmo. Deixa-o estar.
Mas eu não conseguia evitar imaginar quem seria aquele homem antes de ser apenas “o velho rabugento do café”. Tinha família? Amigos? Porque vinha sempre sozinho? Porque nunca sorria?
Naquela manhã, António levantou-se mais cedo do que o costume. Pagou a conta — coisa rara — e saiu sem olhar para trás. O sino da porta tilintou e ficou a ecoar na minha cabeça durante horas.
No dia seguinte, ele não apareceu. Nem no outro. Nem no outro a seguir.
Na primeira semana, pensei que estivesse doente. Na segunda, comecei a perguntar aos clientes habituais se sabiam dele. Ninguém sabia nada. O meu pai encolheu os ombros:
— Deve ter ido para o lar. Ou então morreu. Gente assim não deixa saudades.
Mas eu sentia um nó no estômago. Não conseguia aceitar que alguém pudesse simplesmente desaparecer sem deixar rasto, sem que ninguém desse por falta dele.
Numa tarde chuvosa, decidi ir até ao prédio onde sabia que ele morava — uma informação que apanhei ao acaso numa conversa entre clientes. Subi as escadas escuras e bati à porta do 3º esquerdo. Ninguém respondeu. Mas a vizinha do lado abriu a porta.
— Procura o senhor António? — perguntou ela, com um olhar desconfiado.
— Sim… sou do café onde ele ia todos os dias.
Ela suspirou.
— A ambulância veio buscá-lo há uns dias. Dizem que foi para o hospital de Santa Maria. Não sei mais nada.
Agradeci e desci as escadas com o coração apertado. No hospital disseram-me que tinha dado entrada com uma pneumonia grave e que estava nos cuidados intensivos. Não tinha família registada. Ninguém o visitava.
Durante dias, lutei comigo mesma: devia ir vê-lo? O que diria? Afinal, éramos quase estranhos… ou talvez não.
Na semana seguinte, levei-lhe um pastel de nata do café e fui ao hospital. Quando entrei no quarto, ele estava de olhos fechados, ligado a máquinas. Sentei-me ao lado da cama e fiquei ali em silêncio durante muito tempo.
— Maria… — murmurou ele de repente, sem abrir os olhos.
Fiquei gelada.
— Está aqui? — perguntou ele, com a voz fraca.
— Estou… Vim ver como estava.
Ele abriu os olhos devagar e olhou para mim como se me visse pela primeira vez.
— Nunca pensei… — disse ele, com um sorriso triste.
Ficámos ali em silêncio durante minutos eternos. Depois ele começou a falar — pela primeira vez em dezoito anos.
Contou-me que tinha sido professor de História antes da reforma. Que tinha uma filha chamada Sofia com quem não falava há mais de vinte anos por causa de uma discussão estúpida sobre dinheiro e orgulho. Que a mulher morrera cedo demais e que desde então nunca mais conseguiu perdoar-se por ter ficado sozinho.
— Sabe, Maria… — disse ele — as pessoas acham que velhos como eu são só rabugentos porque sim. Mas ninguém imagina o peso dos dias vazios…
Eu chorei baixinho enquanto lhe segurava a mão magra. Senti vergonha por nunca ter tentado saber quem era aquele homem além do cliente difícil.
Nos dias seguintes fui visitá-lo sempre que podia. Levava-lhe jornais, bolos, às vezes só companhia. Ele falava-me da infância em Évora, das viagens a Coimbra com a mulher, das saudades da filha.
Um dia perguntei-lhe:
— Porque não tenta falar com a Sofia?
Ele abanou a cabeça.
— Já é tarde demais para remendar certas coisas…
Mas eu não aceitei aquela resposta. Com alguma investigação e ajuda de uma amiga minha nos registos civis, consegui encontrar o contacto da filha dele. Liguei-lhe com o coração aos pulos.
— Desculpe incomodar… É sobre o seu pai…
Do outro lado ouvi silêncio e depois uma voz fria:
— Não tenho pai.
Expliquei-lhe tudo: o hospital, a solidão dele, os anos passados no café sem ninguém. Houve outro silêncio longo antes dela dizer:
— Vou pensar…
No dia seguinte encontrei Sofia sentada no corredor do hospital, com um ramo de flores na mão e os olhos vermelhos de tanto chorar.
Entrámos juntas no quarto. António olhou para ela como se visse um fantasma.
— Sofia…
Ela chorou convulsivamente enquanto lhe agarrava a mão.
— Pai… desculpe…
Fiquei ali parada à porta, sentindo-me intrusa mas também orgulhosa por ter sido ponte entre dois corações partidos pelo orgulho e pelo tempo perdido.
António morreu três dias depois daquela visita. Sofia esteve ao lado dele até ao fim.
No funeral estavam apenas meia dúzia de pessoas: eu, Sofia, dois vizinhos e um antigo colega da escola onde ele ensinara. O meu pai não foi — disse que não fazia sentido ir ao enterro de um cliente malcriado.
Mas naquele momento percebi que ninguém é só aquilo que mostra ao mundo nas suas rotinas diárias. Por detrás de cada rosto fechado pode haver uma história de amor perdido, de saudade ou arrependimento.
Voltei ao café no dia seguinte com um peso novo no peito e uma vontade enorme de olhar para cada cliente como alguém único e cheio de histórias por contar.
Às vezes dou por mim a perguntar: quantos “Antónios” passam pelas nossas vidas sem nunca sabermos quem realmente são? E se tivéssemos coragem de perguntar — ou simplesmente ouvir — quantas vidas poderíamos mudar?