Dez Anos Sem Tiago: Ecos de um Amor Perdido
— Não podes simplesmente ir embora, Tiago! — gritei-lhe naquela manhã chuvosa de outubro, a voz embargada pela incredulidade e pelo medo. Ele olhou-me com olhos vazios, como se já não me visse ali. O som da chuva a bater nos vidros misturava-se com o silêncio pesado entre nós.
Lembro-me de cada detalhe desse dia como se fosse hoje. O cheiro do café queimado na cozinha, as malas encostadas à porta, o bilhete rabiscado à pressa em cima da mesa: “Desculpa. Não sou capaz de explicar. Cuida de ti. Tiago.” Não havia mais nada. Nem um abraço, nem um olhar final. Só a ausência.
Durante semanas, recusei-me a acreditar. A minha mãe, Dona Rosa, vinha todos os dias cá a casa, trazendo sopa quente e palavras que não aqueciam nada. “Filha, os homens às vezes perdem-se… Mas tu és forte.” Forte? Eu sentia-me feita em pedaços. Os vizinhos cochichavam à minha passagem. “Dizem que ele foi com aquela do escritório…” “Coitada da Mariana, ficou sozinha depois de tantos anos…”
O Tiago e eu tínhamos construído uma vida juntos: dois filhos já crescidos, uma casa modesta em Vila Nova de Gaia, sonhos partilhados ao longo de vinte e dois anos. E agora tudo isso era só meu — ou melhor, era só dor.
Os meses passaram e as cartas começaram a chegar. Não eram cartas de amor, nem sequer de arrependimento. Eram envelopes com dinheiro e notas curtas: “Para as despesas.” “Para o João na faculdade.” Rasgava-as sem abrir. Não queria o dinheiro dele. Queria respostas.
O João, nosso filho mais velho, fechou-se em si mesmo. Passava horas no quarto, os olhos vermelhos de tanto chorar ou talvez de raiva. A Inês, mais nova e sempre tão sensível, começou a ter pesadelos. Uma noite ouvi-a murmurar: “A mãe também vai embora?” Sentei-me na beira da cama dela e prometi que não. Mas por dentro sentia-me tão perdida quanto eles.
Os anos foram passando. Aprendi a viver com o vazio ao meu lado na mesa do jantar. Voltei a trabalhar na pastelaria da Dona Lurdes, onde as conversas eram sobre bolos e clientes e não sobre maridos desaparecidos. A vida foi-se tornando rotina: acordar cedo, preparar pequenos-almoços, apanhar o autocarro para o centro da cidade, sorrir para clientes que me olhavam com pena.
Mas nunca deixei de pensar no Tiago. Onde estaria? Porquê aquela partida sem explicação? Os rumores diziam que estava em Lisboa com uma mulher chamada Carla — uma colega do escritório onde ele trabalhava como contabilista. Outros diziam que tinha ido para o estrangeiro. Nunca soube ao certo.
A minha família dividiu-se entre quem achava que eu devia perdoar e quem dizia que devia odiá-lo para sempre. A minha irmã Teresa era das primeiras: “Ele errou, mas todos erramos… Talvez um dia voltem a falar.” O meu pai nunca mais pronunciou o nome dele.
Dez anos passaram assim — devagarinho, como quem arrasta os pés numa estrada de terra batida. Os filhos cresceram, seguiram as suas vidas. O João tornou-se engenheiro e foi viver para Braga; a Inês casou-se cedo demais, talvez à procura da estabilidade que lhe faltou em casa.
E eu? Fui aprendendo a gostar do silêncio da casa vazia. A cuidar das minhas plantas, a ler romances antigos nas noites frias de inverno. Mas havia sempre um eco dentro de mim: o eco da ausência do Tiago.
Foi numa tarde de março que tudo mudou outra vez. Estava a fechar a pastelaria quando ouvi alguém chamar pelo meu nome: “Mariana?” Virei-me devagar — aquela voz era impossível de confundir, mesmo depois de tanto tempo.
O Tiago estava ali, parado à porta, mais magro e com cabelos grisalhos. Os olhos tinham a mesma tristeza daquela manhã em que partiu.
— Preciso falar contigo — disse ele baixinho.
O meu coração disparou como se tivesse vinte anos outra vez. Quis gritar-lhe tudo o que guardei durante uma década: a raiva, o medo, a saudade. Mas só consegui perguntar:
— Porquê? Porquê agora?
Ele baixou os olhos:
— Estive doente… Muito doente. A Carla morreu há dois meses. Não tenho ninguém. Só pensei em ti.
Senti uma mistura de pena e revolta. Quis abraçá-lo e ao mesmo tempo empurrá-lo para longe.
— E achas que podes voltar assim? Depois de tudo?
Ele chorou — pela primeira vez em vinte anos vi o Tiago chorar como uma criança perdida.
— Não quero voltar para pedir perdão ou para recomeçar… Só queria que soubesses que nunca deixei de te amar. Fui cobarde. Fugi porque tinha medo de ser infeliz ao teu lado… E acabei por ser infeliz sozinho.
As palavras dele ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Contei tudo à minha mãe, que suspirou fundo:
— O coração tem razões que ninguém entende…
O João recusou-se a vê-lo; a Inês chorou ao telefone: “Mãe, não deixes esse homem magoar-te outra vez!”
Passei noites sem dormir, olhando para o teto do quarto onde tantas vezes adormecemos juntos. O que é que se faz quando o passado regressa assim? Perdoa-se? Esquece-se?
Encontrei-me com o Tiago mais duas vezes. Falámos do passado, dos filhos, das escolhas erradas. Ele parecia mais velho do que realmente era — como se os anos tivessem pesado mais nele do que em mim.
No último encontro, sentámo-nos num banco do Jardim do Morro a ver o pôr-do-sol sobre o Douro.
— Mariana — disse ele — se pudesse voltar atrás faria tudo diferente.
Olhei para ele e percebi que já não era o homem por quem me apaixonei — nem eu era a mesma mulher.
— Eu também faria diferente — respondi — mas agora só quero paz.
Ele sorriu tristemente e levantou-se para ir embora outra vez — desta vez sem promessas nem bilhetes.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será possível perdoar verdadeiramente alguém que nos partiu o coração? Ou será que há dores que nunca saram? Talvez nunca saiba as respostas certas… Mas sei que sobrevivi.
E vocês? Já tiveram de escolher entre perdoar ou seguir em frente sozinhos? O que fariam no meu lugar?