Dez Anos de Silêncio: O Regresso Que Dói

— Não podes simplesmente entrar por essa porta e fingir que nada aconteceu! — gritei, sentindo a voz tremer-me na garganta, enquanto Rui pousava a mala no chão do corredor. O cheiro da chuva entrava pela porta aberta, misturando-se com o perfume antigo dele, aquele aroma que durante anos me perseguiu nos sonhos e nos pesadelos.

Ele olhou-me com olhos cansados, mais velhos do que me lembrava. Dez anos. Dez anos de silêncio, de perguntas sem resposta, de noites em claro a ouvir o vento bater nas janelas e a imaginar onde estaria o pai dos meus filhos. E agora ali estava ele, como se tivesse ido só ali ao café da esquina.

— Ana, eu sei que não tenho desculpa — murmurou Rui, a voz rouca. — Mas precisava de voltar. Precisava de vos ver.

As palavras dele caíram pesadas na sala. Os miúdos — já não tão miúdos assim — estavam no quarto, mas eu sabia que ouviam cada sílaba. O Tomás tinha 17 anos agora, a Beatriz 15. Cresceram sem pai, com uma mãe que tentava ser tudo e nunca era suficiente.

— Rui, tu não fazes ideia do que foi viver sem ti — respondi, sentindo as lágrimas a ameaçarem-me os olhos. — Não sabes o que foi ter de explicar aos teus pais, aos nossos amigos… aos nossos filhos! — A minha voz falhou.

Ele baixou a cabeça. Por um momento, vi no rosto dele o homem por quem me apaixonei na faculdade do Porto, aquele rapaz sonhador que me prometeu o mundo numa noite quente de São João. Mas esse Rui tinha desaparecido há muito tempo.

— Eu tentei escrever-te — disse ele, quase num sussurro. — Mas nunca tive coragem de enviar as cartas.

Ri-me, amarga. — Cartas? Achas que cartas iam resolver alguma coisa? Dez anos, Rui! Dez anos em que eu não sabia se estavas vivo ou morto!

O silêncio caiu entre nós como uma cortina pesada. O relógio da sala marcava as horas com um tique-taque irritante. Lembrei-me das noites em que adormecia no sofá à espera de ouvir a chave dele na porta. Lembrei-me das vezes em que Tomás perguntava: “Mãe, o pai vai voltar?” E eu respondia sempre com um “não sei” sufocado.

A primeira noite depois do regresso dele foi um tormento. Dormi pouco, ouvindo os passos dele pela casa, como se fosse um estranho. De manhã, Beatriz apareceu na cozinha com os olhos inchados.

— Mãe… ele vai ficar? — perguntou ela, a voz quase inaudível.

Abracei-a com força. — Não sei, filha. Não sei mesmo.

Rui tentou aproximar-se dos filhos nos dias seguintes. Comprou pastéis de nata para o pequeno-almoço, tentou ajudar Tomás com os trabalhos da escola, mas era tudo forçado. Tomás evitava-o, respondia-lhe com monossílabos ou nem sequer olhava para ele.

Uma noite, ouvi-os discutir no corredor.

— Não tens direito de me dizer nada! — gritou Tomás. — Não estiveste cá quando precisei! Quando a mãe chorava todas as noites! Quando a avó morreu e tu nem apareceste!

Rui ficou calado. Eu só conseguia chorar em silêncio no quarto ao lado.

Os meus pais também não facilitaram. A minha mãe ligou-me assim que soube do regresso dele:

— Ana Margarida, não podes simplesmente aceitar esse homem de volta! Ele abandonou-vos! — dizia ela, indignada.

— Mãe, eu não sei o que fazer…

— Tens de pensar nos teus filhos! No que é melhor para eles!

Mas o que era melhor? Manter Rui afastado e continuar a viver com o vazio? Ou tentar perdoar e reconstruir uma família feita em cacos?

Uma tarde chuvosa, Rui sentou-se comigo na varanda. O céu estava cinzento sobre Vila Nova de Gaia e as gaivotas gritavam ao longe.

— Ana… eu não fugi por vossa causa — começou ele. — Tive um esgotamento… não aguentei a pressão do trabalho, das dívidas… Senti-me sufocado e fiz a pior escolha da minha vida.

Olhei-o nos olhos pela primeira vez desde que voltou. Vi ali arrependimento verdadeiro. Mas também vi medo.

— Porque não pediste ajuda? — perguntei, a voz embargada.

Ele encolheu os ombros. — Fui cobarde. Achei que vos estava a proteger… mas só vos magoei mais.

As palavras dele ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Comecei a reparar nas pequenas coisas: como ele olhava para os filhos com tristeza, como tentava ajudar em casa sem saber bem como. Vi também como Tomás se fechava cada vez mais no quarto e Beatriz andava ansiosa, sem saber se devia confiar ou não naquele pai ausente.

Uma noite, depois do jantar, sentei-me com os dois à mesa.

— Sei que isto é difícil para vocês… — comecei eu. — Mas precisamos de decidir juntos o que queremos fazer daqui para a frente.

Tomás olhou para mim com raiva nos olhos.

— Eu não quero saber dele! Ele não é meu pai! O meu pai morreu há dez anos!

Beatriz começou a chorar baixinho.

— Filhos… eu também estou magoada — disse eu, tentando manter a calma. — Mas talvez devêssemos dar-lhe uma oportunidade de explicar…

A discussão durou horas. No fim, ficou decidido que Rui podia ficar em casa por uns tempos, mas teria de conquistar a confiança deles passo a passo.

Os meses seguintes foram um teste à nossa resistência. Houve dias em que parecia possível recomeçar: jantares em família onde se ouvia uma gargalhada tímida da Beatriz ou um comentário menos agressivo do Tomás. Mas bastava um olhar mais duro ou um silêncio prolongado para tudo voltar ao início.

A minha sogra recusou-se a ver Rui durante semanas. Quando finalmente apareceu lá em casa, foi só para lhe atirar à cara:

— Tu mataste-me de vergonha perante toda a gente! O meu filho desaparece e eu sem saber se estava vivo ou morto!

Rui chorou nesse dia pela primeira vez desde que voltou. Eu abracei-o no corredor escuro da casa onde tantas vezes sonhámos juntos um futuro diferente.

Houve também momentos de esperança: quando Beatriz aceitou ir ao cinema com ele; quando Tomás lhe pediu ajuda para arranjar a bicicleta; quando os quatro conseguimos jantar juntos sem discussões.

Mas as feridas eram profundas demais para sararem depressa. Eu própria sentia-me dividida: parte de mim queria perdoar Rui e reconstruir tudo; outra parte queria gritar-lhe todas as noites perdidas e todos os sonhos desfeitos.

Uma noite, sentei-me sozinha na varanda e escrevi-lhe uma carta que nunca cheguei a entregar:

“Rui,
Não sei se algum dia vou conseguir perdoar-te verdadeiramente. Mas sei que preciso de tentar pelo bem dos nossos filhos e pelo meu próprio bem-estar. Não quero viver presa ao passado nem ao rancor. Quero acreditar que as pessoas podem mudar.”

O tempo passou devagarinho. Fomos aprendendo a viver todos juntos outra vez — com cautela, com medo, mas também com esperança.

Hoje olho para trás e pergunto-me: será possível reconstruir uma família depois de tanta dor? Será o perdão suficiente para curar feridas tão antigas? E vocês… já conseguiram perdoar alguém que vos magoou tanto?