Dez Anos de Espera: O Peso das Escolhas de Isabella

— Outra vez a mesma conversa, Maria? — O tom da minha voz saiu mais alto do que queria, mas já não aguentava ouvir a minha sogra repetir-se.

Ela estava de pé à porta da cozinha, braços cruzados, olhar duro. — Isabella, não é conversa. É necessidade. O Nuno está a trabalhar horas extra, chega a casa exausto e tu… tu nem tentas ajudar. Não achas que já chega?

Senti o sangue ferver-me nas veias. Olhei para o chão, para os azulejos gastos da casa da avó do Nuno, onde vivíamos há quase dez anos. — Eu já expliquei. Não é assim tão simples. Não me sinto preparada…

— Preparada? — interrompeu ela, quase a rir-se. — Para um part-time na mercearia do senhor António? Só tens de arrumar prateleiras e atender pessoas! — A voz dela ecoou pela casa vazia.

O Nuno estava no trabalho, como sempre. Eu sabia que ele ouvia estas discussões quando chegava a casa: o silêncio pesado, o olhar cansado da mãe, o meu rosto inchado de chorar. Mas nunca dizia nada. Limitava-se a sentar-se à mesa, comer em silêncio e ir dormir cedo.

A verdade é que eu própria já não sabia explicar porque recusava aquele trabalho. No início, tinha medo: medo de falhar, de não saber lidar com pessoas, de não conseguir conciliar tudo. Depois vieram as desculpas: as dores de cabeça, o cansaço inexplicável, a ansiedade que me paralisava sempre que pensava em sair de casa para trabalhar.

Mas os anos passaram e nada mudou. O dinheiro era sempre contado ao cêntimo. O Nuno trabalhava numa fábrica de móveis em Paços de Ferreira, ganhava pouco mais do que o salário mínimo. A casa era da avó dele — uma mulher doce que nos acolheu quando casámos, mas que agora já mal saía do quarto. Se não fosse ela, nem teto teríamos.

A minha mãe morreu cedo e o meu pai nunca foi presente. Cresci com a minha tia em Braga, sempre a ouvir que devia estudar para ser alguém na vida. Mas nunca fui boa aluna. Quando conheci o Nuno, ele parecia o meu porto seguro: trabalhador, calmo, sempre com um sorriso para mim. Casámos cedo demais, talvez.

Lembro-me do primeiro Natal nesta casa: a mesa pequena, as luzes fracas, mas uma alegria genuína por estarmos juntos. Agora tudo parecia diferente. O dinheiro não chegava para prendas ou sequer para um jantar especial.

Uma noite, ouvi o Nuno falar baixinho com a mãe na sala:

— Ela não está bem, mãe. Não é só preguiça…

— Não está bem? Então precisa de ajuda! Mas tu sozinho não consegues sustentar esta casa para sempre!

Senti-me pequena, envergonhada e furiosa ao mesmo tempo. Porque é que ninguém percebia? Porque é que eu própria não conseguia sair deste buraco?

A pressão aumentava todos os meses: as contas da luz e da água atrasadas, o frigorífico quase vazio no fim do mês. A avó do Nuno precisava de medicamentos caros e era Maria quem pagava quase tudo com a reforma dela.

Um dia, Maria entrou no meu quarto sem bater:

— Isabella, ou começas a trabalhar ou vais ter de sair desta casa. Eu já não aguento mais!

Chorei como uma criança. Liguei à minha tia em Braga:

— Tia… eu não sei o que fazer… sinto-me perdida.

Ela suspirou do outro lado da linha:

— Filha, às vezes temos de engolir o orgulho e fazer sacrifícios. O Nuno merece mais do que isto.

As palavras dela ficaram-me na cabeça durante dias. Olhava para o Nuno à noite, a dormir profundamente depois de mais um turno duplo na fábrica. Ele nunca reclamava comigo — mas também já não sorria como antes.

Tentei convencer-me a aceitar o trabalho na mercearia. Fui lá duas vezes falar com o senhor António. Na primeira vez, travei à porta e voltei para casa sem entrar. Na segunda vez, entrei mas só consegui dizer:

— Desculpe… afinal não posso aceitar.

Ele olhou-me com pena e disse:

— Não faz mal, menina Isabella. Quando quiseres, sabes onde estou.

Voltei para casa envergonhada e zangada comigo própria. O Nuno percebeu logo:

— Não conseguiste… pois não?

Abanei a cabeça e ele apenas suspirou.

As discussões com Maria tornaram-se diárias. Ela dizia que eu era egoísta, que estava a destruir o filho dela e a família toda. Eu gritava-lhe que não percebia nada do que sentia — mas nem eu sabia explicar.

Comecei a sentir-me cada vez mais isolada. As amigas afastaram-se; ninguém queria ouvir sempre as mesmas lamúrias. Passei a sair pouco do quarto; só ia à cozinha quando sabia que Maria estava ocupada com a avó.

Um dia ouvi Maria ao telefone com uma prima:

— A Isabella está cada vez pior… acho que precisa de um médico… mas ela nem isso aceita!

Senti vergonha e raiva. Mas também medo: medo de ser mesmo eu o problema; medo de perder tudo; medo de nunca conseguir mudar.

Nessa noite, sentei-me ao lado do Nuno na cama:

— Achas que sou um peso para ti?

Ele ficou calado muito tempo antes de responder:

— Não és um peso… mas estás a puxar-me para baixo contigo.

Chorei baixinho até adormecer.

No dia seguinte acordei decidida a tentar outra vez. Fui à mercearia e pedi ao senhor António para começar na semana seguinte.

Os primeiros dias foram horríveis: tremia por dentro cada vez que um cliente me pedia alguma coisa; sentia os olhares das vizinhas como facas nas costas; Maria nem me falava em casa.

Mas aos poucos fui ganhando confiança. O dinheiro era pouco — mas pela primeira vez em anos senti-me útil.

O Nuno começou a sorrir outra vez; Maria deixou de me olhar com desprezo; até a avó pareceu mais animada quando lhe contei que estava a trabalhar.

Mas as feridas ficaram: anos de ressentimento e mágoa não desaparecem de um dia para o outro.

Hoje olho para trás e pergunto-me: porque demorei tanto tempo? Porque deixei o medo controlar a minha vida? Será que alguma vez vou conseguir perdoar-me — ou será que eles algum dia me vão perdoar?

E vocês? Já sentiram este peso das expectativas dos outros? Como se volta a confiar numa família depois de tanto tempo afastados?