Desconhecido à Porta: A Verdade Sobre a Minha Família Que Ninguém Quer Admitir
— Mariana, abre a porta! — gritou a minha mãe do corredor, com uma urgência que nunca lhe tinha ouvido antes. O som da campainha ecoava pela casa, misturando-se ao trovão lá fora. Eu estava sentada no sofá, com o coração apertado, sentindo que algo estava prestes a acontecer. Não era só o tempo que estava estranho naquela tarde de novembro em Lisboa; era como se o próprio ar estivesse carregado de presságios.
Levantei-me devagar, os meus pés descalços tocando o chão frio do corredor. A minha mãe, Teresa, olhava-me com olhos arregalados e uma expressão de medo que me gelou o sangue. — Mariana, por favor, não digas nada — sussurrou ela, agarrando-me pelo braço. — Seja quem for, deixa-me falar primeiro.
Abri a porta. Do outro lado estava um homem de meia-idade, cabelo grisalho, olhos castanhos tão parecidos com os meus que por um segundo perdi o fôlego. Ele sorriu, mas era um sorriso triste, quase um pedido de desculpa.
— Olá, Teresa. Olá… Mariana — disse ele, hesitante.
A minha mãe empalideceu. — O que estás aqui a fazer, Rui? — perguntou ela, a voz trémula.
Eu olhava de um para o outro, sentindo-me uma intrusa na minha própria casa. Rui? Quem era Rui? Porque é que ele sabia o meu nome?
— Vim porque já não aguento mais viver com isto — respondeu ele. — Mariana tem o direito de saber.
O silêncio caiu pesado entre nós. O relógio da sala marcava 18h12. Lembro-me porque fixei aquele momento como se fosse uma fotografia: a minha mãe a tremer, o homem à porta e eu no meio, sem saber que a minha vida estava prestes a ser despedaçada.
— Saber o quê? — perguntei, tentando controlar o tremor na voz.
A minha mãe virou-se para mim, lágrimas nos olhos. — Mariana… Eu devia ter-te contado há muito tempo. Este é o Rui… teu pai biológico.
O chão fugiu-me dos pés. Senti-me cair num abismo sem fundo. O meu pai? Mas o meu pai era o António! O homem que me ensinou a andar de bicicleta no Jardim da Estrela, que me levava ao estádio da Luz aos domingos, que me abraçava quando eu tinha pesadelos.
— Não… Não pode ser — murmurei, recuando.
O Rui deu um passo à frente, mas a minha mãe interpôs-se entre nós. — Não te atrevas! — gritou ela. — Já fizeste estragos suficientes!
Ele baixou a cabeça. — Teresa, eu só quero falar com a Mariana. Explicar-lhe tudo.
O meu corpo tremia. Sentei-me no chão do corredor, abraçando os joelhos. As lágrimas corriam-me pelo rosto sem eu conseguir controlar. A minha mãe ajoelhou-se ao meu lado, mas eu afastei-a.
— Porque é que nunca me disseste? — perguntei-lhe entre soluços.
Ela tentou tocar-me no rosto, mas desviei-me. — Eu tinha medo… Medo de te perder. Medo de perder tudo aquilo que construímos.
— E o pai? O António? Ele sabe?
Ela hesitou antes de responder. — Sabe… há muitos anos. Mas escolhemos guardar segredo para te proteger.
Olhei para Rui. Ele parecia tão perdido quanto eu. — Porque é que vieste agora? Depois de todos estes anos?
Ele suspirou. — Porque estou doente, Mariana. Não sei quanto tempo me resta e não queria partir sem te conhecer verdadeiramente.
O peso das palavras dele caiu sobre mim como uma avalanche. Senti raiva, tristeza, confusão. Tudo ao mesmo tempo.
— Saiam os dois! Preciso de estar sozinha! — gritei.
Fechei-me no quarto durante horas. Oiço-os discutir na sala: vozes baixas, acusações antigas, mágoas nunca saradas. Oiço o nome do António repetido vezes sem conta. Sinto-me traída por todos: pela minha mãe por me mentir; pelo António por fingir; por este homem estranho que diz ser meu pai e aparece agora, quando já não sei quem sou.
Naquela noite não dormi. Fiquei sentada na cama a olhar para fotografias antigas: eu em criança ao colo do António; eu e a minha mãe na praia da Caparica; aniversários cheios de sorrisos que agora me parecem falsos.
De manhã cedo ouvi baterem à porta do quarto. Era o António.
— Posso entrar? — perguntou ele com aquela voz calma que sempre me acalmou em pequena.
Assenti em silêncio.
Ele sentou-se ao meu lado e ficou ali sem dizer nada durante uns minutos. Depois pegou na minha mão.
— Mariana… Eu sou teu pai porque sempre quis ser teu pai. O sangue não muda isso. O amor também não.
Chorei no ombro dele como quando era criança e tinha medo do escuro.
— Porque é que nunca me disseste?
Ele suspirou fundo. — Porque te amo mais do que tudo e tinha medo de te perder se soubesses a verdade.
Ficámos ali abraçados até eu conseguir respirar fundo outra vez.
Nos dias seguintes tentei evitar Rui, mas ele não desistiu. Mandou cartas, mensagens, esperou por mim à porta da escola de música onde dou aulas de piano às crianças do bairro de Alvalade.
Um dia cedi e aceitei encontrá-lo num café perto do Rossio.
Ele parecia mais velho do que lembrava daquela primeira noite. As mãos tremiam-lhe quando pegou na chávena de café.
— Mariana… Sei que não posso pedir-te nada depois de tantos anos ausente. Só queria que soubesses que sempre pensei em ti. Que tentei voltar tantas vezes mas nunca tive coragem…
Olhei para ele com raiva e pena ao mesmo tempo.
— E agora? O que queres de mim?
Ele sorriu tristemente. — Só quero conhecer-te um pouco antes de partir.
Conversámos durante horas sobre música (descobri que ele também tocava piano), sobre livros (ambos adorávamos Saramago), sobre Lisboa antiga e as ruas onde cresci sem saber que ele passava por lá tantas vezes só para me ver à distância.
Voltei para casa confusa e magoada mas também curiosa sobre este homem que afinal fazia parte de mim.
A minha mãe ficou furiosa quando soube do encontro.
— Não percebes que ele só quer limpar a consciência? Que vai magoar-te outra vez?
Discutimos como nunca antes: gritos, portas a bater, acusações feias lançadas no calor do momento.
— Tu mentiste-me toda a vida! Como podes pedir-me para confiar em ti agora?
Ela chorou como nunca a vi chorar antes.
Os dias passaram e fui tentando reconstruir os pedaços da minha identidade estilhaçada: aceitei ir com Rui ao hospital nas consultas dele; levei-lhe livros; ouvi histórias da juventude dele com a minha mãe antes de tudo se complicar; tentei perdoar-lhe a ausência mesmo sabendo que nunca vou esquecer.
Com o António voltei a encontrar algum conforto: continuámos os nossos passeios pelo Jardim da Estrela; voltámos ao estádio da Luz; falámos sobre futebol e sobre tudo menos sobre segredos antigos.
Com a minha mãe foi mais difícil: demorámos meses até conseguirmos conversar sem lágrimas ou gritos pelo meio. Mas aos poucos fomos reconstruindo uma relação baseada numa nova honestidade dolorosa mas necessária.
Quando Rui morreu meses depois senti uma tristeza estranha: não era só luto por alguém que mal conhecia mas também pelo tempo perdido, pelas perguntas sem resposta, pelos abraços nunca dados.
No funeral estavam poucos amigos e familiares; eu fiquei até ao fim junto ao caixão dele enquanto chovia lá fora como naquele dia em que tudo começou.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias vivem presas em segredos como o nosso? Quantas Marianas há por aí sem saberem quem realmente são? Será possível perdoar quem nos mente para nos proteger?