Depois dos Sessenta: O Amor que Mudou Tudo
— Maria, já chega dessa tristeza, filha. — A voz da minha irmã, Teresa, ecoava pela cozinha, misturando-se com o cheiro do café acabado de fazer. — O António não ia querer ver-te assim.
Olhei para ela, sentada à minha frente, os olhos cheios de preocupação. Não respondi. Desde que o António partiu, há três anos, as palavras pareciam ter perdido o sabor. Eu era uma sombra na casa onde outrora se ouvia gargalhadas e discussões acesas à mesa de jantar.
Durante meses, acordava todos os dias com a sensação de que devia fazer chá para dois. Só depois de pôr a água ao lume é que me lembrava: estava sozinha. A casa parecia maior, os móveis mais frios. Os filhos já tinham as suas vidas: a Ana em Lisboa, sempre apressada, e o Miguel emigrado para França, a lutar por um futuro melhor para os netos que eu via apenas pelo ecrã do telemóvel.
Foi numa dessas manhãs cinzentas que decidi ir ao mercado. Não precisava de nada em especial, mas queria ouvir vozes humanas, sentir o burburinho da cidade pequena onde todos se conhecem. No caminho, cruzei-me com o Sr. Joaquim, o sapateiro, que me cumprimentou com um sorriso triste. Parecia que todos sabiam do vazio que me habitava.
Na banca das frutas, uma mão estendeu-me uma maçã vermelha.
— Experimente esta, dona Maria. Está doce como mel — disse o vendedor novo, um homem alto, cabelo grisalho e olhos castanhos vivos.
Sorri por educação e aceitei a maçã. — Obrigada, senhor…?
— Manuel. Cheguei há pouco à vila. Vim de Braga.
A conversa foi breve, mas naquele instante senti algo diferente. Uma faísca ténue, quase imperceptível, mas suficiente para me fazer voltar ao mercado nos dias seguintes. Manuel era gentil, tinha sempre uma palavra amiga e um sorriso sincero. Aos poucos, comecei a esperar pelas quartas-feiras só para trocar dois dedos de conversa com ele.
— Então, dona Maria, já provou as laranjas desta semana? — perguntava ele.
— Só se vierem acompanhadas desse seu bom humor — respondia eu, surpreendendo-me com a leveza da minha própria voz.
As vizinhas começaram a reparar. A D. Rosa comentou à porta da igreja:
— Olha que a Maria anda diferente… Até parece mais nova!
Eu ria-me dessas coisas, mas no fundo sentia-me mesmo a renascer. O Manuel convidou-me para tomar café num domingo à tarde. Hesitei — seria traição à memória do António? Mas aceitei.
Sentámo-nos na esplanada do Café Central. Falámos da vida, das saudades dos filhos, das dores nas costas e dos sonhos adiados. Manuel contou-me que também era viúvo e que viera para aquela vila em busca de paz.
Os encontros tornaram-se rotina. Passeávamos pelo jardim municipal, partilhávamos silêncios confortáveis e risos inesperados. Pela primeira vez em anos, senti o coração bater mais forte.
Foi numa dessas tardes que a Ana apareceu sem avisar.
— Mãe? Quem é este senhor? — perguntou ela, franzindo o sobrolho ao ver-nos juntos.
Senti-me uma adolescente apanhada em flagrante.
— É só um amigo — respondi apressada.
Mas Ana não ficou convencida. Nos dias seguintes, ligou-me várias vezes:
— Mãe, tens de ter cuidado. Não conheces esse homem! — insistia ela.
Fiquei dividida entre a alegria do novo amor e a culpa de estar a magoar os meus filhos. Miguel ligou de França:
— Mãe, ouvi dizer que andas acompanhada… Não te esqueças do pai!
As palavras dele doeram mais do que eu esperava. Passei noites em claro a pensar se estava a ser egoísta por querer voltar a ser feliz.
Mas Manuel era paciente. Nunca me pressionou. Dizia apenas:
— Maria, cada um tem direito ao seu tempo de luto… Mas também tem direito à felicidade.
Foi então que começaram os boatos na vila. Diziam que Manuel tinha vindo fugido de Braga por causa de dívidas. Outros sussurravam que tinha deixado família para trás.
Confrontei-o numa noite chuvosa:
— Manuel, preciso saber quem és realmente. Não aguento mais esta dúvida.
Ele baixou os olhos e suspirou fundo.
— Maria… Não sou perfeito. Tive problemas no passado. O meu filho envolveu-se em más companhias e eu fiz tudo para o ajudar… Acabei por perder quase tudo. Vim para cá tentar recomeçar.
Senti um aperto no peito. Queria acreditar nele, mas o medo era maior.
Ana apareceu em casa nesse fim de semana com o marido e os netos.
— Mãe, tens mesmo a certeza do que estás a fazer? — perguntou ela durante o jantar.
O ambiente estava pesado. O meu genro evitava olhar para mim e os miúdos percebiam que algo não estava bem.
Depois do jantar, sentei-me sozinha na varanda. O vento frio fazia-me tremer, mas não tanto quanto as dúvidas dentro de mim.
Na segunda-feira seguinte, fui ao mercado como sempre. Manuel estava lá, mas parecia diferente — mais cansado, mais velho.
— Maria… Se quiseres afastar-te de mim, compreendo — disse ele baixinho.
Olhei-o nos olhos e vi ali toda a tristeza do mundo. Percebi então que todos temos fantasmas no passado; uns mais visíveis do que outros.
Abracei-o ali mesmo, sem medo dos olhares curiosos das vizinhas.
Os meses passaram e as águas acalmaram-se um pouco. Ana aceitou finalmente conhecer melhor Manuel e percebeu que ele era apenas um homem ferido pela vida como eu.
Miguel continuou distante, mas aos poucos foi aceitando a ideia de ver a mãe sorrir outra vez.
Hoje olho para trás e penso em tudo o que vivi desde aquela manhã no mercado: a solidão esmagadora, o medo do julgamento alheio, as dúvidas sobre merecer ou não uma segunda oportunidade para amar.
Às vezes pergunto-me: quantas vidas cabem numa só vida? E será que alguma vez é tarde demais para recomeçar?