Depois dos 60: As Dez Coisas Que Deixei Para Trás e os Arrependimentos Que Vieram

— Mãe, não podes continuar assim. — A voz da minha filha, Inês, ecoava pela sala, carregada de preocupação e uma ponta de impaciência. Eu olhava para ela, sentada à minha frente, com as mãos entrelaçadas sobre a mesa de madeira gasta. O relógio da parede marcava 19h12, e o cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o aroma distante das flores do quintal.

— Assim como, Inês? — perguntei, tentando manter a voz firme. — Só porque decidi deixar algumas coisas para trás? Não percebes que já não tenho idade para certas lutas?

Ela suspirou, desviando o olhar para a janela. Lá fora, o sol punha-se devagar sobre os telhados de telha vermelha da nossa aldeia em Trás-os-Montes. O silêncio entre nós era pesado, cheio de tudo o que nunca dissemos.

A verdade é que, depois dos sessenta, comecei a sentir o peso das escolhas e das renúncias. Não foi de um dia para o outro. Foi um processo lento, quase impercetível. Primeiro foi o trabalho na escola primária. Depois vieram as pequenas rotinas: as idas ao café com as amigas, os serões de cartas ao domingo, até mesmo as festas da aldeia que sempre me animaram.

Deixei de conduzir o velho Renault Clio porque me sentia insegura nas curvas apertadas da serra. Vendi-o ao vizinho Manuel por um preço simbólico. Ele disse-me: — Dona Teresa, tem a certeza? — E eu sorri, fingindo alívio. Mas quando vi o carro a desaparecer estrada fora, senti um vazio estranho.

A seguir foi o jardim. As roseiras que plantei com o António, meu marido falecido há seis anos, começaram a definhar. Já não tinha forças para cavar a terra nem paciência para afastar as ervas daninhas. Um dia, sentei-me no banco de pedra e chorei baixinho, pedindo desculpa às flores por as abandonar.

Deixei também de cozinhar grandes almoços de domingo. Os filhos raramente vinham todos juntos; cada um com a sua vida, os netos ocupados com tablets e telemóveis. A casa parecia demasiado grande para mim sozinha. Passei a aquecer sopa e a comer pão com queijo à frente da televisão.

A Inês percebeu tudo isto antes de mim. — Mãe, tens de reagir — insistia ela ao telefone. — Não podes desistir da vida só porque envelheceste.

Mas não era desistir. Era aceitar que certas coisas já não me pertenciam. Ou pelo menos assim pensei.

Outra coisa que deixei foi a esperança de reconciliar-me com o meu irmão mais novo, o João. Discutimos há vinte anos por causa da herança dos nossos pais — uma quinta pequena e uns terrenos sem grande valor. Palavras duras foram ditas naquela tarde quente de agosto e nunca mais nos falámos. Durante anos guardei rancor; depois, apenas cansaço.

Também desisti de viajar. Sempre sonhei ir a Lisboa ver o Tejo ao pôr-do-sol ou visitar Fátima em peregrinação. Mas fui adiando: primeiro por falta de dinheiro, depois por medo de sair da rotina. Agora sinto que perdi o tempo certo.

Deixei de escrever cartas à minha amiga Rosa, emigrada em França há décadas. No início trocávamos notícias todas as semanas; depois os meses passaram e as palavras secaram. Ainda guardo as cartas dela numa caixa azul no fundo do armário.

Desisti dos meus livros preferidos porque a vista já não ajuda e os óculos parecem nunca estar no sítio certo. Os romances do Eça e da Agustina ficaram a ganhar pó na estante.

Por fim, deixei de acreditar que poderia voltar a apaixonar-me. O António foi o meu grande amor; depois dele só restou uma saudade tranquila e uma cama fria nas noites longas de inverno.

No total, foram dez coisas que deixei para trás:

  1. O trabalho na escola
  2. O carro
  3. O jardim
  4. Os almoços de domingo em família
  5. As festas e convívios da aldeia
  6. A reconciliação com o João
  7. As viagens adiadas
  8. As cartas à Rosa
  9. Os livros
  10. A esperança num novo amor

No início senti-me aliviada, como se me libertasse de pesos antigos. Mas com o tempo vieram os arrependimentos — pequenos fantasmas que me visitam à noite quando tudo está em silêncio.

Lembro-me do dia em que a Inês trouxe os netos para me visitar e eles correram pelo quintal vazio, perguntando pelas flores desaparecidas. Senti uma pontada no peito ao ver os olhos deles dececionados.

Ou daquela vez em que vi o João na missa do domingo de Páscoa e quase lhe acenei, mas faltou-me coragem. Ele saiu antes do final; nunca saberei se sentiu o mesmo aperto no coração.

Às vezes penso se devia ter lutado mais pelas amizades antigas ou insistido em reunir a família à mesa nem que fosse só uma vez por mês.

Uma noite sonhei com o António sentado no banco do jardim, sorrindo para mim entre as roseiras floridas como antigamente. Acordei com lágrimas nos olhos e uma vontade imensa de voltar atrás no tempo.

— Mãe — disse-me a Inês nesse dia — ainda vais a tempo de recuperar algumas coisas.

Olhei para ela sem saber responder. Será mesmo possível recomeçar depois dos sessenta? Ou será que há perdas que são definitivas?

Hoje escrevo esta história sentada na mesma mesa onde tudo começou, rodeada pelo silêncio e pelas memórias. Sei que não sou a única a sentir estes vazios; muitos dos meus vizinhos partilham histórias parecidas nas conversas à porta da igreja ou no banco do jardim público.

Pergunto-me: será que devia ter resistido mais? Ou faz parte da vida aprender a deixar ir?

E vocês, já sentiram este peso das escolhas feitas tarde demais? O que fariam diferente se pudessem voltar atrás?