Depois do Divórcio: O Regresso de Carlos e os Desafios de uma Nova Família

— Maria, precisamos falar. — A voz do Carlos ecoou no corredor, rouca, quase suplicante. Eu estava a meio de dobrar a roupa da minha filha Leonor quando ouvi a campainha. O som trouxe-me de volta a um passado que eu julgava enterrado, mas que afinal nunca me largou.

Abri a porta devagar, o coração aos pulos. Carlos estava ali, mais magro, com olheiras fundas e um olhar que misturava vergonha e esperança. Atrás dele, uma criança de olhos grandes e cabelo escuro agarrava-se à perna dele.

— O que fazes aqui? — perguntei, tentando manter a voz firme.

Ele respirou fundo, olhou para o chão e depois para mim. — Preciso da tua ajuda. Não tenho para onde ir. A Cristina… ela foi-se embora. Deixou-me com o Diogo.

O nome dela era como um murro no estômago. Cristina, a mulher por quem Carlos me trocou dois anos antes. E agora estava ali, à minha porta, com o filho deles.

— E achaste que eu era a solução? — O tom saiu mais duro do que queria. Mas como podia ser diferente? Lembrei-me das noites em claro, das lágrimas escondidas no travesseiro, da sensação de abandono.

Carlos baixou a cabeça. — Não sei mais a quem recorrer. O Diogo não tem culpa de nada disto.

Olhei para o menino. Tinha uns quatro anos, talvez menos. Os olhos dele encontraram os meus e vi neles uma mistura de medo e curiosidade. Senti um aperto no peito.

— Podes entrar — disse finalmente, afastando-me para lhes dar passagem.

A casa pareceu encolher com a presença deles. Leonor apareceu na sala, parou ao ver o pai e ficou imóvel. Havia raiva nos olhos dela, mas também saudade.

— Olá, filha — murmurou Carlos, ajoelhando-se ao nível dela.

Ela não respondeu. Limitou-se a olhar para mim, como se pedisse permissão para sentir alguma coisa.

Os dias seguintes foram um turbilhão. Carlos dormia no sofá da sala, Diogo numa cama improvisada ao lado dele. Eu tentava manter uma rotina para Leonor, mas tudo estava diferente. O silêncio à mesa era pesado; as conversas, curtas e tensas.

Uma noite, ouvi Leonor chorar no quarto. Entrei devagar e sentei-me ao lado dela.

— Mãe, porque é que o pai voltou? — perguntou entre soluços.

— Porque precisa de ajuda — respondi, acariciando-lhe o cabelo.

— E o Diogo? Ele vai ficar cá para sempre?

Não soube responder. Como explicar-lhe que às vezes os adultos se perdem e arrastam os filhos consigo?

No dia seguinte, enquanto preparava o jantar, ouvi Carlos e Diogo na sala.

— Papá, porque é que a mamã não gosta de mim? — perguntou Diogo com voz trémula.

Carlos suspirou. — A Maria não é tua mãe, filho. Mas ela é boa pessoa. Vais ver que tudo vai correr bem.

Senti uma lágrima escorrer-me pela face. Não era justo para ninguém. Nem para mim, nem para Leonor, nem para aquele menino que não tinha culpa dos erros dos adultos.

As semanas passaram e as tensões aumentaram. Leonor começou a chegar tarde da escola, evitava estar em casa. Uma noite, depois de jantar, explodiu:

— Porque é que ele está aqui? Ele não é da nossa família! — gritou, apontando para Diogo.

Carlos levantou-se num salto. — Leonor! Não fales assim!

— Não me digas o que fazer! Tu foste embora! Deixaste-nos! Agora queres voltar como se nada fosse?

O silêncio caiu como uma pedra. Eu tentei intervir:

— Leonor, calma…

— Não! Estou farta disto! — Correu para o quarto e bateu com a porta.

Carlos sentou-se à mesa, cabeça entre as mãos. Diogo chorava baixinho no canto da sala.

Nessa noite não dormi. Fiquei a pensar em tudo o que tinha perdido e no que ainda podia perder. O amor-próprio que reconstruí depois do divórcio; a relação frágil com a minha filha; a paz que custara tanto a conquistar.

No dia seguinte, decidi falar com Carlos.

— Isto não pode continuar assim — disse-lhe na cozinha enquanto ele preparava café.

Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas.

— Eu sei. Só preciso de tempo para encontrar um sítio para ficar com o Diogo. Não quero estragar mais a tua vida.

— Já está estragada há muito tempo — respondi sem pensar.

Ele ficou calado durante uns segundos e depois murmurou:

— Desculpa, Maria. Nunca devia ter-te deixado assim…

As palavras ficaram no ar como uma promessa quebrada.

Nessa tarde fui buscar Leonor à escola mais cedo e levei-a ao parque.

— Sei que isto é difícil para ti — disse-lhe enquanto ela balançava devagar no baloiço.

Ela olhou-me com olhos vermelhos de tanto chorar.

— Tenho medo que me deixes também…

Abracei-a com força.

— Nunca te vou deixar, filha. És tudo para mim.

Ela encostou-se ao meu peito e ficou ali em silêncio durante muito tempo.

Quando voltámos para casa, encontrei Carlos sentado no sofá com Diogo ao colo. Estavam os dois a ver desenhos animados, mas havia tristeza nos olhos deles.

Naquela noite sentei-me à mesa com todos e tentei algo diferente.

— Sei que todos estamos magoados — comecei. — Mas precisamos de encontrar uma forma de viver juntos enquanto for preciso. Ninguém tem culpa disto tudo…

Carlos assentiu em silêncio. Leonor cruzou os braços mas ficou calada. Diogo olhou-me com esperança tímida.

Os dias seguintes foram feitos de pequenos gestos: Leonor deixou um brinquedo antigo ao pé do Diogo; Carlos ajudou-me a arrumar a cozinha sem eu pedir; eu sentei-me ao lado do Diogo enquanto ele desenhava e perguntei-lhe sobre os desenhos dele.

Pouco a pouco, as paredes começaram a cair. Não foi fácil nem rápido. Houve recaídas: discussões acesas entre mim e Carlos sobre o passado; choros noturnos de Leonor; pesadelos do Diogo a chamar pela mãe ausente.

Um dia recebi uma chamada da Cristina. A voz dela era fria:

— O Carlos está contigo?

— Está — respondi seca.

— Diz-lhe que não quero saber dele nem do miúdo. Arranjem-se vocês.

Desligou antes que eu pudesse responder. Fiquei ali parada com o telefone na mão, sentindo uma raiva surda crescer dentro de mim.

À noite contei ao Carlos sobre a chamada. Ele chorou pela primeira vez desde que voltou. Chorou como uma criança perdida.

Abracei-o sem saber porquê. Talvez porque no fundo ainda havia amor misturado com pena; talvez porque sabia o que era sentir-se abandonada.

O tempo passou e Carlos encontrou finalmente um pequeno apartamento nos arredores de Lisboa. Na véspera da mudança dele e do Diogo, fizemos um jantar especial em casa: arroz de pato como nos velhos tempos.

Leonor ajudou-me na cozinha e até sorriu quando Diogo lhe pediu para brincar com ela depois do jantar.

Quando Carlos saiu com as malas na manhã seguinte, abraçou-me demoradamente:

— Obrigado por tudo, Maria…

Fiquei à porta a vê-los afastar-se até desaparecerem na esquina da rua.

A casa ficou estranhamente silenciosa depois disso. Leonor sentou-se ao meu lado no sofá e encostou a cabeça ao meu ombro.

— Achas que algum dia vamos ser uma família normal? — perguntou baixinho.

Olhei pela janela para o céu cinzento de Lisboa e pensei em tudo o que tínhamos passado juntos: traições, perdão, dor e pequenos milagres diários de recomeço.

Será que existe mesmo uma família normal? Ou será que somos todos apenas sobreviventes das nossas próprias escolhas?