Depois do Casamento, a Minha Filha e o Genro Vieram Viver Cá em Casa: Até Quando Vou Aguentar?
— Mãe, só mais uns meses, prometo. O João ainda não encontrou trabalho e o senhorio não devolveu a caução do apartamento antigo. — A voz da Eliana ecoava pela cozinha, misturada com o cheiro do café queimado e o som abafado da televisão na sala.
Olhei para ela, para aquele rosto que conheço desde sempre, agora marcado por olheiras e ansiedade. O João, sentado à mesa, mexia no telemóvel sem levantar os olhos. Senti uma pontada no peito — de cansaço, de frustração, de culpa. Não era assim que imaginei a minha vida aos 56 anos.
Quando a Eliana nasceu, jurei a mim mesma que nunca lhe faltaria nada. O António, meu marido, partiu cedo demais — um acidente na estrada, uma manhã de nevoeiro. Fiquei sozinha com uma menina de três anos e uma mercearia pequena no bairro de Benfica. Lutei todos os dias para pôr comida na mesa. Quando ela fez 15 anos, tive de vender metade do negócio para pagar as dívidas do António. Nunca lhe contei tudo — não queria que ela sentisse o peso dos meus sacrifícios.
Agora, tantos anos depois, a casa voltou a encher-se de vozes e passos. Mas não é alegria que sinto. É um peso no peito, uma sensação de invasão. A minha sala deixou de ser minha; o sofá está sempre ocupado com mochilas e casacos; a casa de banho nunca está livre quando preciso. E as contas… aumentaram sem aviso prévio.
— Teresa, viste onde puseste os meus papéis do centro de emprego? — gritou o João do corredor.
— Não sou tua secretária! — respondi, mais alto do que queria. Senti o olhar magoado da Eliana.
À noite, fecho-me no quarto e penso na minha mãe. Ela dizia sempre: “Filhos criados, trabalhos dobrados.” Nunca percebi bem até agora. Sinto-me ingrata por desejar a casa vazia outra vez. Mas também me sinto usada. Será que é errado querer paz?
No domingo passado, tentei conversar com eles durante o jantar.
— Vocês já pensaram em procurar algo fora de Lisboa? Há empregos no Norte, ou até no Alentejo… — sugeri, tentando soar compreensiva.
O João bufou.
— E deixar tudo para trás? Não faz sentido. Aqui temos contactos, amigos…
A Eliana ficou calada, mexendo no arroz com o garfo.
— Mãe, eu sei que não é fácil para ti — disse ela baixinho. — Mas estamos mesmo a tentar.
A verdade é que não vejo esforço nenhum. O João passa os dias em casa, diz que está à procura de trabalho mas nunca sai para entrevistas. A Eliana arranjou um part-time numa loja de roupa, mas o ordenado mal chega para pagar o passe dos transportes.
Esta semana foi a gota d’água. Cheguei a casa depois de um dia longo na mercearia e encontrei a cozinha num caos: loiça suja empilhada, restos de comida no fogão, lixo por tirar. Senti uma raiva surda subir-me à garganta.
— Isto não pode continuar assim! — explodi. — Não sou vossa empregada! Se querem ficar aqui, têm de ajudar!
O João levantou-se da mesa com ar ofendido.
— Se é assim que nos queres aqui, mais vale irmos embora!
A Eliana chorou nessa noite. Veio ao meu quarto pedir desculpa.
— Mãe, não quero que fiques zangada comigo. Só preciso de mais tempo…
Abracei-a como quando era pequena. Mas por dentro sentia-me vazia.
Os dias passaram e nada mudou. O João continua fechado no quarto com o computador; a Eliana chega tarde do trabalho e mal fala comigo. A casa está cheia de silêncios pesados.
No sábado à noite ouvi-os discutir no corredor.
— Não aguento mais viver aqui! — dizia o João.
— E achas que eu aguento? É a minha mãe! — respondeu a Eliana entre soluços.
Senti-me culpada por ouvir atrás da porta, mas não consegui evitar.
No domingo seguinte, durante o almoço, tentei outra vez:
— Filha, eu amo-te muito. Mas preciso da minha casa de volta. Preciso de paz. Vocês têm de encontrar uma solução.
A Eliana olhou para mim com olhos vermelhos.
— Achas que eu não quero sair daqui? Achas que gosto de te ver assim?
O João saiu da mesa sem dizer palavra.
Fiquei sozinha com a minha filha adulta à frente. Pela primeira vez vi-a como mulher e não como criança. Vi-lhe as rugas finas ao canto dos olhos, os sonhos desfeitos pela crise económica, os medos que nunca me contou.
— Desculpa se te desiludi — disse ela baixinho.
— Não me desiludiste — respondi. — Só quero que sejas feliz… mas também preciso de ser feliz.
Naquela noite não dormi. Pensei em tudo o que abdiquei por ela: noites sem dormir, contas por pagar, sonhos adiados. Pensei também em tudo o que ela abdicou por mim: nunca foi estudar para fora porque eu precisava dela na loja; nunca viajou porque não havia dinheiro; casou cedo porque queria estabilidade.
Na segunda-feira seguinte deixei-lhe uma carta na almofada:
“Filha,
Amo-te mais do que tudo neste mundo. Mas preciso da minha vida de volta. Preciso da minha casa só para mim. Sei que vais encontrar um caminho — és forte como eu fui quando precisei de ser. Não quero perder-te, mas também não posso perder-me a mim mesma.
Com amor,
Mãe”
Quando cheguei a casa ao fim do dia, encontrei a Eliana sentada na sala com as malas feitas.
— Vamos ficar uns dias em casa da Andreia até arranjarmos algo — disse ela sem me olhar nos olhos.
Abracei-a com força e chorei como há muito tempo não chorava.
Agora a casa está silenciosa outra vez. Sinto falta do barulho… mas também respiro melhor. Pergunto-me se fiz bem ou mal; se fui egoísta ou apenas humana.
Será que há um limite para o amor de mãe? Até onde devemos ir pelos nossos filhos sem nos perdermos pelo caminho? E vocês… já passaram por isto?