Depois do Altar: Entre o Amor e a Sombra da Minha Sogra
— Não, mãe, não é preciso trazer mais bacalhau. A Ana já comprou tudo para o jantar — ouvi o Ricardo dizer ao telefone, mas a sua voz era hesitante, quase submissa. Eu estava na cozinha, a mexer o arroz, e sentia o olhar invisível da minha sogra pairar sobre mim, mesmo estando ela do outro lado da linha.
Desde o início do nosso casamento, a Dona Lurdes fez questão de marcar território. No dia em que nos mudámos para o nosso pequeno apartamento em Almada, ela apareceu com três sacos de compras e um sorriso apertado. “Eu sei como o Ricardo gosta das coisas”, disse, enquanto reorganizava os armários da cozinha. Eu sorri, sem coragem de contrariar.
Os primeiros meses foram um desfile de pequenas invasões: toalhas trocadas sem aviso, panelas mudadas de sítio, até as minhas plantas foram substituídas por manjericão e salsa “porque dão mais jeito”. O Ricardo achava graça. “Deixa lá, ela só quer ajudar.” Mas eu sentia-me cada vez mais pequena dentro da minha própria casa.
As discussões começaram baixinho. “Ana, não devias usar tanto sal.” “Ana, o Ricardo não gosta de frango assado.” “Ana, já viste como está a tua sala? Eu depois venho cá ajudar-te.” O Ricardo nunca me defendia. Limitava-se a encolher os ombros e a mudar de assunto.
Uma noite, depois de mais uma visita inesperada da Dona Lurdes — que entrou sem bater porque tinha uma chave “para emergências” — sentei-me na cama e chorei em silêncio. O Ricardo apareceu ao meu lado, mas não disse nada. Só me deu um beijo na testa e adormeceu.
No trabalho, os colegas perguntavam-me porque andava tão calada. Eu inventava desculpas: “É só cansaço.” Mas a verdade é que já não sabia quem era aquela mulher que via ao espelho todas as manhãs. A Ana decidida, que estudou engenharia e sempre sonhou viajar pelo mundo, tinha desaparecido algures entre as receitas da sogra e as opiniões do marido.
O ponto de rutura chegou numa tarde de domingo. Estávamos todos sentados à mesa — eu, o Ricardo, a Dona Lurdes e o meu cunhado Paulo — quando ela comentou:
— O Ricardo está tão magro! Não sei o que andas a fazer-lhe em casa, Ana.
O Paulo riu-se. O Ricardo baixou os olhos para o prato. Eu senti uma raiva surda subir-me à garganta.
— Talvez ele esteja magro porque passa mais tempo a ouvir críticas do que a comer — disparei, surpreendendo até a mim própria.
O silêncio caiu como uma pedra. A Dona Lurdes olhou-me como se eu tivesse cuspido no prato. O Ricardo levantou-se abruptamente e saiu para a varanda.
Nessa noite, discutimos como nunca antes. Ele acusou-me de ser ingrata, de não perceber que a mãe só queria ajudar. Eu gritei que estava farta de viver à sombra dela. Ele saiu de casa e só voltou de madrugada.
Durante dias mal falámos. A Dona Lurdes ligava todos os dias para saber se estava tudo bem com o “menino dela”. Eu sentia-me cada vez mais sozinha.
Foi então que comecei a escrever um diário. Precisava de me ouvir outra vez. Escrevia sobre os meus sonhos antigos, sobre as viagens que queria fazer, sobre como me sentia invisível dentro da minha própria vida.
Certa tarde, ao chegar do trabalho, encontrei a Dona Lurdes na minha sala, sentada no sofá com um ar triunfante.
— Vim só ver se precisavas de alguma coisa — disse ela.
— Preciso que me devolva a minha casa — respondi, com uma calma que não sabia ter.
Ela ficou sem palavras pela primeira vez desde que a conheço. Levantou-se devagar e saiu sem olhar para trás.
O Ricardo chegou pouco depois. Quando lhe contei o que tinha acontecido, ele ficou furioso.
— Como é que te atreves? Ela é minha mãe!
— E eu sou tua mulher! Quando é que vais perceber isso?
A discussão durou horas. Pela primeira vez em anos, disse tudo o que tinha guardado: o medo de perder quem sou, a solidão, a sensação de ser sempre a segunda escolha.
Ele chorou. Eu também. Ficámos abraçados no chão da sala até adormecer.
Nos dias seguintes, as coisas mudaram devagarinho. O Ricardo começou a pôr limites à mãe. Mudámos a fechadura da porta. Voltámos a cozinhar juntos. Fomos ao cinema como nos velhos tempos.
Mas as feridas ficaram. A Dona Lurdes deixou de aparecer sem avisar, mas ligava todos os dias para lembrar ao filho “quem sempre esteve lá por ele”.
Às vezes pergunto-me se algum dia vou conseguir perdoar o Ricardo por ter deixado chegar as coisas tão longe. Outras vezes pergunto-me se fui eu que permiti tudo isto por medo de desagradar.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que entrou neste casamento cheia de sonhos e certezas. Aprendi que o amor não basta se não houver respeito e espaço para crescer.
E vocês? Acham que é possível reconstruir uma relação depois de tanto silêncio? Será que alguma vez voltamos a ser quem éramos antes de nos perdermos pelos outros?