Depois de Dez Anos: O Regresso de Rui e as Feridas que Nunca Fecham
— Mãe, não o deixes entrar! — gritou a Inês, com os olhos marejados de lágrimas, enquanto eu olhava para a porta, onde Rui esperava, cabisbaixo, com uma mala gasta na mão. O coração batia-me tão forte que quase abafava a voz da minha filha. O Miguel, mais velho, limitou-se a cruzar os braços e virar costas. O silêncio dele doía mais do que qualquer palavra.
Dez anos. Dez anos desde aquela noite em que Rui fez as malas e saiu sem olhar para trás. Lembro-me do cheiro do seu perfume a pairar no corredor, das palavras frias: “Preciso disto, Ana. Preciso de ir atrás do que sinto.” Não chorei na frente dele. Esperei que a porta se fechasse para desabar no chão da cozinha, entre brinquedos espalhados e pratos por lavar. Os miúdos dormiam, pequenos demais para perceberem que o pai não voltaria naquela noite — nem em muitas outras.
Durante anos, tentei ser mãe e pai. Trabalhava no supermercado da vila de manhã, limpava casas à tarde. À noite, estudava com a Inês e ouvia as queixas do Miguel sobre a escola. Não havia tempo para mim. Os vizinhos cochichavam: “Coitada da Ana, ficou sozinha com dois filhos.” A minha mãe dizia-me para ser forte. O meu pai, já doente, só me olhava com pena.
Rui mandava postais no Natal e nos aniversários das crianças. Nunca dinheiro. Nunca uma visita. Dizia que estava em Lisboa, depois ouvi dizer que tinha ido para o Algarve. Uma vez, a Inês perguntou: “Achas que o pai ainda gosta de nós?” E eu menti: “Claro que sim, filha.” Mas no fundo sabia que ele tinha escolhido outra vida.
Agora estava ali, dez anos mais velho, cabelo grisalho nas têmporas e olhos cansados. — Ana… — murmurou ele, quase sem voz. — Preciso falar contigo.
O Miguel bufou: — Não tens nada para dizer aqui. Vai-te embora.
Eu hesitei. O instinto dizia-me para fechar a porta na cara dele. Mas havia uma parte de mim — talvez aquela mesma parte ingénua que acreditou nas promessas dele há tantos anos — que queria ouvir.
— Entra — disse finalmente, ignorando os protestos dos meus filhos.
Sentámo-nos na sala. Rui pousou a mala aos pés e ficou a olhar para as mãos. O silêncio era pesado, só interrompido pelo tic-tac do relógio da parede.
— Sei que não mereço… — começou ele. — Sei que vos magoei. Mas perdi tudo, Ana. O trabalho, os amigos… até a mulher por quem te deixei.
Senti um aperto no peito. Não era raiva — era pena. E isso doía ainda mais.
— E agora? — perguntei, tentando manter a voz firme. — Achas que podes voltar como se nada fosse?
Ele abanou a cabeça.
— Não espero perdão. Só queria… um sítio onde ficar uns dias. Prometo não incomodar.
A Inês levantou-se de rompante:
— Não quero vê-lo aqui! Nunca quis saber de nós! Agora é tarde!
Correu para o quarto e bateu com a porta. O Miguel seguiu-a em silêncio.
Ficámos sozinhos na sala. Olhei para Rui — tão diferente do homem por quem me apaixonei aos vinte anos nas festas de São João em Braga. Tinha sido um rapaz divertido, cheio de sonhos e promessas de felicidade eterna. Mas a vida não é feita de promessas.
— Porque voltaste mesmo? — perguntei.
Ele suspirou:
— Porque não tenho mais ninguém, Ana. Porque… porque nunca devia ter saído daqui.
As palavras ficaram no ar como um eco amargo.
Nessa noite não dormi. Ouvi os passos dos miúdos pelo corredor, ouvi o choro abafado da Inês. Senti-me dividida entre o dever de ajudar alguém em desespero e o direito de proteger o pouco que reconstruí.
No dia seguinte, a minha mãe apareceu sem avisar.
— Ouvi dizer que o Rui voltou — disse ela, sem rodeios.
Assenti em silêncio.
— Vais deixá-lo ficar?
Encolhi os ombros:
— Não sei o que fazer, mãe. Ele está perdido… mas nós também estivemos perdidos por causa dele.
Ela pousou a mão no meu ombro:
— Às vezes perdoar é mais difícil do que esquecer.
Durante dias, Rui ficou num quarto pequeno ao fundo do corredor. Não falava muito com os miúdos; eles evitavam-no como se fosse um estranho. Eu via-o à mesa do pequeno-almoço, olhar vazio na chávena de café.
Uma tarde, ouvi vozes exaltadas vindas do quarto do Miguel:
— Porque voltaste? — gritava o meu filho. — Achas que podes ser pai agora?
Rui respondeu baixinho:
— Não posso mudar o passado… mas queria tentar ser melhor agora.
Miguel saiu furioso:
— Já é tarde demais!
A casa tornou-se um campo de batalha silencioso. Eu tentava manter as rotinas: trabalho, compras, refeições. Mas tudo parecia estranho com Rui ali — como se o tempo tivesse parado e ao mesmo tempo avançado depressa demais.
Uma noite sentei-me ao lado dele na sala escura.
— O que esperas de mim? — perguntei.
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez desde que voltou:
— Só queria sentir-me em casa outra vez… nem que seja por pouco tempo.
Senti lágrimas nos olhos pela primeira vez em anos.
— E eu? Quando é que fui eu a sentir-me em casa?
Ele baixou a cabeça:
— Desculpa…
Os dias passaram devagar. Os vizinhos começaram a comentar: “A Ana é uma santa por o receber.” Outros diziam: “Cuidado, não te deixes enganar outra vez.” Eu própria não sabia em quem acreditar — nele ou em mim mesma.
A Inês recusava-se a falar com ele. O Miguel saía cedo e chegava tarde. Eu sentia-me sozinha no meio da minha própria família.
Uma tarde chuvosa, Rui apareceu na cozinha com uma carta na mão.
— Vou embora amanhã — disse ele. — Não quero causar mais problemas.
Fiquei ali parada, sem saber se sentia alívio ou tristeza.
Na manhã seguinte, vi-o sair pela porta com a mala gasta. Olhou para trás uma última vez:
— Obrigado por tudo… mesmo assim.
Fechei a porta devagar e encostei-me à madeira fria. Senti um vazio enorme — como se tivesse perdido algo que já não era meu há muito tempo.
Os miúdos vieram ter comigo na sala.
— Ele foi-se embora? — perguntou a Inês.
Assenti.
Ela abraçou-me com força inesperada:
— Ainda bem… mas dói na mesma, mãe.
O Miguel sentou-se ao meu lado:
— Achas que algum dia vamos conseguir perdoar?
Olhei para eles e pensei em tudo o que passámos juntos: as noites sem sono, as festas de aniversário só com bolo caseiro e velas tortas, as idas ao parque nos domingos cinzentos…
Talvez nunca consigamos perdoar totalmente. Talvez algumas feridas fiquem sempre abertas — mas pelo menos temos uns aos outros.
Agora pergunto-me: quantas vezes podemos recomeçar depois de sermos magoados? Será possível reconstruir uma família quando as peças já não encaixam como antes?