Depois de 15 Anos Juntos, Planeei Sair. Um Emprego no Estrangeiro Mudou Tudo, Mas Não Como Eu Esperava
— Vais mesmo deixar-me assim, sem uma palavra? — A voz da Ana ecoou pelo corredor, carregada de mágoa e incredulidade. Eu estava de costas, a mala já feita, as mãos a tremer. Não era suposto ela saber. Não agora.
O relógio da cozinha marcava 5h47 da manhã. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o frio cortante de janeiro em Lisboa. Os miúdos ainda dormiam. O silêncio era pesado, quase sufocante.
Respirei fundo, tentando encontrar coragem para responder. — Não é isso, Ana. Preciso de tempo. Preciso de espaço para pensar.
Ela riu-se, um riso amargo, quase histérico. — Espaço? Depois de 15 anos juntos? Depois de tudo o que passámos? — Os olhos dela brilhavam com lágrimas que se recusavam a cair.
A verdade é que o nosso casamento já não era o mesmo há anos. Começámos tão novos — eu com 24, ela com 22 — cheios de sonhos e promessas. Tivemos dois filhos lindos, o Tiago e a Matilde, mas a rotina foi-nos engolindo. O amor transformou-se em hábito, em obrigações partilhadas, em silêncios desconfortáveis à mesa do jantar.
O convite para trabalhar seis meses em Bruxelas caiu-me do céu como uma desculpa perfeita. Disse à Ana que era uma oportunidade única, que podia abrir portas para todos nós. Mas no fundo, era uma fuga. Planeava voltar e pedir o divórcio. Ela não sabia disso. Ninguém sabia.
Os primeiros dias em Bruxelas foram um choque. O frio era diferente, cortante, e as ruas cheias de gente apressada faziam-me sentir ainda mais sozinho. No trabalho, tudo era novo: colegas portugueses e belgas, reuniões intermináveis, pressão constante para mostrar serviço.
Foi lá que conheci o Rui, um engenheiro do Porto que também estava deslocado. Tornámo-nos amigos rapidamente. Partilhávamos jantares improvisados no meu pequeno apartamento e confidências regadas a vinho barato.
— Sentes falta de casa? — perguntou-me ele numa dessas noites.
— Não sei… — respondi, olhando para o copo vazio. — Sinto falta dos miúdos. Da rotina deles. Mas com a Ana… sinto-me perdido.
O Rui ficou calado por uns segundos antes de dizer: — Às vezes fugimos porque temos medo de enfrentar o que está mesmo à nossa frente.
As palavras dele ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias.
Entretanto, comecei a receber mensagens estranhas da Ana. Primeiro eram só perguntas sobre os miúdos ou contas da casa. Depois vieram os silêncios prolongados nas chamadas por vídeo, os olhares fugidios.
Uma noite, liguei-lhe mais cedo do que o habitual. Ela atendeu com voz apressada.
— Está tudo bem? — perguntei.
— Está… está tudo ótimo — respondeu ela, mas percebi que não estava sozinha. Ouvi uma voz masculina ao fundo.
O coração apertou-se-me no peito. Tentei ignorar, convencer-me de que era só paranoia minha. Mas nos dias seguintes, as mensagens dela tornaram-se ainda mais distantes.
Comecei a desconfiar. Falei com a minha irmã, a Joana, que sempre foi muito chegada à Ana.
— Achas que ela está com alguém? — perguntei-lhe num sussurro ao telefone.
A Joana hesitou antes de responder: — Olha, mano… ela tem andado diferente. Sai mais vezes com amigas… ou pelo menos é isso que diz.
O tempo em Bruxelas tornou-se insuportável. O trabalho já não me distraía das saudades nem das dúvidas. Comecei a sentir ciúmes — um sentimento estranho depois de tantos anos de indiferença conjugal.
Quando faltavam duas semanas para regressar a Lisboa, recebi uma mensagem do Tiago:
“Pai, quando voltas? A mãe anda triste.”
O mundo desabou-me aos pés. Senti-me egoísta por ter fugido sem pensar neles verdadeiramente.
No voo de regresso, as mãos suavam-me tanto que mal conseguia segurar o passaporte. O aeroporto da Portela parecia mais cinzento do que nunca.
Cheguei a casa sem avisar ninguém. A porta estava destrancada. Entrei devagarinho e ouvi risos vindos da sala. Era a Ana… e um homem desconhecido sentado no sofá ao lado dela e dos miúdos.
Ela levantou-se num salto ao ver-me:
— Miguel… este é o Pedro — disse ela, nervosa. — O Pedro é… um amigo.
O Pedro levantou-se também, estendendo-me a mão com um sorriso desconfortável.
— Prazer…
Fiquei ali parado, sem saber o que fazer ou dizer. O Tiago correu para mim e abraçou-me com força:
— Pai! Finalmente!
A Matilde olhou-me com olhos grandes e tristes:
— A mãe chorou muito enquanto estiveste fora.
Sentei-me no chão da entrada e chorei pela primeira vez em muitos anos. Chorei por mim, pela Ana, pelos nossos filhos e por tudo o que tínhamos perdido sem darmos conta.
Nessa noite, depois de os miúdos irem dormir, sentei-me à mesa com a Ana.
— Já não somos os mesmos — disse-lhe eu, com a voz embargada.
Ela assentiu em silêncio.
— O Pedro faz-te feliz?
Ela hesitou antes de responder:
— Faz-me sentir viva outra vez…
Fiquei ali sentado durante muito tempo depois dela sair da sala. O silêncio era agora diferente: não era pesado nem sufocante; era apenas vazio.
Nos dias seguintes tentámos conversar sobre tudo: sobre os miúdos, sobre as rotinas, sobre como dividiríamos as coisas e as culpas. Houve discussões feias e acusações amargas:
— Tu é que fugiste! — gritava ela.
— E tu não perdeste tempo a encontrar alguém! — respondia eu.
Mas no meio do caos houve também momentos de ternura inesperada: um abraço partilhado na cozinha enquanto chorávamos juntos; um sorriso triste ao recordar os primeiros anos; uma fotografia antiga dos miúdos na praia da Comporta.
No final, percebemos que já não havia volta a dar. O amor tinha mudado de forma — já não era paixão nem desejo; era apenas respeito e gratidão pelo caminho feito juntos.
Hoje vivo sozinho num pequeno apartamento em Almada. Vejo os meus filhos todas as semanas e tento ser o melhor pai possível à distância das rotinas diárias. A Ana está feliz com o Pedro e eu aprendi a aceitar isso.
Às vezes pergunto-me: teria sido diferente se tivéssemos tido coragem de falar antes? Quantos casais vivem assim — juntos mas sozinhos — por medo de enfrentar a verdade?
E vocês? Já sentiram esse vazio silencioso? O que fariam se estivessem no meu lugar?