Depois da Terra Cair: O Dia em que Descobri que o Meu Casamento Era uma Mentira
— Não chores agora, Maria. Não na frente de toda a gente. — repetia para mim mesma, enquanto o som surdo da terra a cair sobre o caixão do António ecoava nos meus ouvidos. O meu corpo tremia, mas não era só de tristeza. Era de medo. Um medo que não sabia explicar, mas que me apertava o peito desde o momento em que entrei na igreja.
A minha sogra, Dona Amélia, olhava-me com olhos frios. O meu cunhado, Rui, nem se dignou a aproximar-se. Os amigos do António murmuravam entre si, lançando-me olhares de pena misturada com algo mais — talvez julgamento? Só a minha filha, Inês, de dez anos, me apertava a mão com força, como se quisesse impedir que eu me desfizesse ali mesmo.
Quando tudo acabou e as pessoas começaram a dispersar-se pelo cemitério de São João, fiquei sozinha junto à campa. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Não era só pela morte do António — era por tudo o que ficou por dizer, por todas as noites em que ele chegava tarde sem explicação, por todas as promessas de um futuro melhor que nunca chegaram.
Naquela noite, sentei-me à mesa da cozinha com uma chávena de chá frio e os olhos fixos nas contas do mês. O António sempre tratou das finanças. Eu confiava nele. “Confiança é tudo num casamento”, dizia-me a minha mãe. Mas agora, com ele morto, as cartas começaram a chegar: bancos, cartões de crédito, avisos de penhora. Dívidas atrás de dívidas. O nosso apartamento em Benfica estava hipotecado até ao pescoço.
— Mãe, vamos ficar sem casa? — perguntou-me Inês, com os olhos grandes e assustados.
— Não, filha… — menti-lhe, porque não sabia o que mais dizer.
Os dias seguintes foram um pesadelo. Descobri que o António tinha dois cartões de crédito escondidos e um empréstimo pessoal que eu nunca soube que existia. Liguei para o Rui, desesperada:
— Rui, preciso falar contigo. O António deixou-nos numa situação complicada…
— Olha, Maria, cada um tem de tratar da sua vida. O meu irmão era crescido. Se te meteste em sarilhos com ele, não é problema meu. — respondeu ele seco.
Senti-me sozinha como nunca antes. Os amigos do António desapareceram. A família dele virou-me as costas. Até os meus próprios pais diziam:
— Devias ter prestado mais atenção ao que se passava em tua casa.
Como se fosse culpa minha.
Uma tarde, enquanto tentava organizar os papéis do António, encontrei uma carta antiga escondida no fundo de uma gaveta. Era de uma mulher chamada Teresa. Li e reli aquelas linhas cheias de saudade e promessas de amor eterno. O mundo desabou outra vez.
— Ele tinha outra mulher… — sussurrei para mim mesma.
A raiva deu lugar à vergonha. Como é que eu não vi? Como é que fui tão cega?
Nessa noite não dormi. Sentei-me no sofá da sala escura e chorei até não ter mais lágrimas. Inês apareceu a meio da noite e abraçou-me em silêncio.
No dia seguinte, fui chamada ao banco. O gerente explicou-me friamente:
— Dona Maria, ou regulariza estas dívidas ou o apartamento será leiloado.
Saí dali sem saber para onde ir. No caminho para casa, cruzei-me com a vizinha do terceiro andar, a Dona Graça. Sempre achei que ela não gostava de mim — era daquelas pessoas que está sempre a espreitar pela janela e a comentar tudo.
— Maria… está tudo bem? — perguntou ela, surpreendentemente suave.
Desatei a chorar ali mesmo no corredor.
Dona Graça levou-me para dentro da sua casa e fez-me chá. Ouviu-me sem interromper enquanto eu despejava tudo: as dívidas, a traição, o medo de perder a casa.
— Olhe, Maria… eu também já passei por muita coisa nesta vida. Quando o meu marido morreu, fiquei sozinha com dois filhos pequenos e uma mão cheia de contas para pagar. Mas sabe? Sobrevive-se. E às vezes a ajuda vem de onde menos se espera.
Ela ofereceu-se para ficar com a Inês depois das aulas enquanto eu procurava trabalho. E foi assim que comecei a trabalhar como empregada numa pastelaria ali perto. Não era o emprego dos meus sonhos — eu tinha sido secretária durante anos — mas era o que havia.
Os meses passaram devagarinho. Cada euro contado ao cêntimo. A Inês sentia falta do pai e perguntava-me muitas vezes porque é que ele nos tinha deixado assim. Eu não sabia responder-lhe sem mentir.
Um dia recebi uma chamada da Teresa — sim, a mulher da carta. Queria encontrar-se comigo.
— Maria… eu não sabia que ele ainda estava casado consigo. Ele disse-me que estava separado há anos…
Olhei para ela e vi uma mulher tão perdida quanto eu.
— Ele mentiu-nos às duas — disse-lhe apenas.
Chorámos juntas naquele café pequeno em Campo de Ourique. Pela primeira vez senti que não estava sozinha na minha dor.
Com o tempo fui reconstruindo a minha vida aos bocadinhos. A Dona Graça tornou-se uma amiga verdadeira — quase uma mãe emprestada. A Teresa ajudou-me a encontrar um emprego melhor numa empresa onde ela trabalhava como administrativa.
Nunca mais confiei cegamente em ninguém. Mas aprendi que há pessoas boas no mundo — mesmo quando tudo parece perdido.
Hoje vivo num apartamento pequeno com a Inês e ainda pago algumas dívidas antigas. Mas já não tenho medo do futuro.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem vidas inteiras sem saberem quem realmente têm ao seu lado? E será possível recomeçar depois de perder tudo? Gostava de saber o que vocês acham…