Depois da Solidão: O Dia em que Escolhi a Mim Mesma

— Maria, não achas que já chega de viver assim? — A voz da minha irmã, Helena, ecoava pelo telefone, carregada de preocupação e impaciência. Eu olhava para a chávena de café meio fria nas minhas mãos e sentia o peso da pergunta. Já chega? Mas chega de quê? Da solidão? Da rotina silenciosa que se instalou no meu T2 em Benfica desde que o António saiu porta fora, há quase sete anos?

A verdade é que me habituei ao silêncio. Os meus filhos, a Joana e o Miguel, já tinham as suas vidas feitas — Joana em Braga com o marido e os netos que só vejo pelo WhatsApp; Miguel em Londres, sempre apressado, sempre ocupado. O António trocou-me por uma mulher mais nova, uma tal de Sílvia, que nunca conheci mas que me assombra nos sonhos mais amargos. No início, a casa parecia um túmulo. Agora, é só minha.

Mas há três anos, numa tarde de inverno em que a chuva batia forte nas janelas, conheci o Rui. Foi num café perto do Mercado de Campo de Ourique. Ele sentou-se ao meu lado por falta de mesas livres e começou a falar do tempo — conversa banal, mas havia algo no seu olhar cansado que me prendeu. Trocámos números. Começámos a encontrar-nos aos sábados para almoçar, depois para passeios pelo Jardim da Estrela. O Rui era viúvo, reformado da Carris, com uma filha emigrada na Suíça e um neto que só conhecia por fotografias.

— Maria, tu fazes-me sentir vivo outra vez — disse-me ele uma noite, enquanto caminhávamos junto ao Tejo. Senti o coração aquecer, mas também um medo antigo a crescer dentro do peito. Eu sabia o que era perder alguém; sabia o preço da entrega.

Os meses passaram e o Rui tornou-se presença constante. Começou a deixar escova de dentes na minha casa, a trazer pão fresco aos domingos. A minha irmã achava-o um achado: — Não sejas parva, Maria! Um homem assim não aparece todos os dias! — dizia ela. Mas havia algo que me inquietava. O Rui era gentil, sim, mas também possessivo. Queria saber onde eu estava a toda a hora, ficava ciumento quando eu falava com amigas ou quando passava tempo com os meus netos.

Uma noite, depois de um jantar em casa dele, discutimos porque recusei passar lá o fim de semana. — Maria, tu nunca te entregas completamente! — gritou ele, batendo com a mão na mesa. Senti-me pequena, como tantas vezes me senti com o António. Voltei para casa sozinha naquela noite e chorei até adormecer.

No dia seguinte, a Joana ligou-me. — Mãe, estás bem? — perguntou ela, com aquela voz doce que só usa quando pressente que algo não está certo. Hesitei antes de responder. Não queria preocupar os meus filhos com os meus dramas tardios. Mas acabei por desabafar.

— Mãe, tu não precisas de ninguém para seres feliz — disse ela. — Nós queremos ver-te bem contigo mesma.

Essas palavras ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Comecei a reparar em pequenas coisas: como gostava do silêncio da casa ao fim do dia; como era bom ler um livro sem interrupções; como me sentia livre para decidir o que comer ao jantar ou se queria sair ou ficar em casa.

O Rui continuava a pressionar-me para avançarmos na relação. Queria casar-se comigo, juntar as famílias no Natal, planear viagens ao Douro. Mas eu sentia-me cada vez mais sufocada.

Uma tarde, depois de uma discussão feia porque recusei vender o meu carro para comprarmos um novo “a meias”, percebi que estava a repetir padrões antigos. O medo de ficar sozinha quase me fez aceitar menos do que merecia.

— Rui, precisamos de falar — disse-lhe numa manhã chuvosa de novembro. Sentámo-nos no café onde tudo começou. Ele olhou-me com expectativa.

— Eu gosto muito de ti — comecei, sentindo as lágrimas a ameaçarem cair — mas aprendi a gostar ainda mais de mim própria. Não quero voltar a perder-me numa relação só porque tenho medo da solidão.

Ele ficou calado durante muito tempo. Depois levantou-se e saiu sem olhar para trás.

Os dias seguintes foram difíceis. Senti falta das mensagens dele, dos passeios juntos. Mas também senti alívio. Pela primeira vez em muitos anos, senti-me dona de mim mesma.

A minha família reagiu de formas diferentes: Helena achou que eu estava a desperdiçar uma oportunidade; Joana ficou orgulhosa; Miguel mandou uma mensagem curta: “Faz o que te faz feliz, mãe”.

Voltei à minha rotina: aulas de pintura no centro cultural do bairro; voluntariado na biblioteca; jantares ocasionais com amigas antigas. Redescobri pequenos prazeres: cozinhar só para mim; ouvir Amália Rodrigues enquanto limpo a casa; passear sozinha pela cidade e sentir Lisboa só minha.

Às vezes ainda sinto falta de alguém ao meu lado nas noites frias ou quando vejo casais idosos de mãos dadas no jardim. Mas aprendi que posso ser feliz assim — comigo mesma, com as minhas memórias e os meus sonhos ainda por realizar.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes aceitamos menos do que merecemos só por medo da solidão? Será que não está na hora de aprendermos a ser felizes connosco próprios antes de procurarmos alguém para preencher o vazio?

E vocês? Já sentiram esse medo? O que escolheriam: arriscar-se numa relação imperfeita ou abraçar a vossa própria companhia?