Depois da Solidão: Entre o Amor e o Medo de Não Pertencer
— Não precisas de fingir, Maria. O meu pai pode estar cego, mas eu não — disse a Inês, com aquela voz fria que me gelou o sangue logo na primeira noite em que jantámos juntos.
Fiquei ali, parada à porta da cozinha, com as mãos ainda húmidas do detergente, a olhar para ela. O Miguel, o meu companheiro, estava na sala a ver televisão, alheio à tensão que se instalava entre mim e a filha dele. Tentei sorrir, mas senti que o rosto me traía.
Nunca pensei que aos 63 anos voltaria a sentir o coração disparar por alguém. Depois da morte do António, o meu marido durante quase quarenta anos, achei que o amor era coisa do passado. O luto foi longo, pesado. O silêncio da casa era ensurdecedor. O meu filho, Rui, vive em Braga com a família; a minha filha, Sofia, raramente tem tempo para mim. Os netos crescem depressa e eu fui-me habituando à solidão: as manhãs no jardim, as tardes de tricô, os serões com novelas e chá.
Quando conheci o Miguel no mercado municipal — ele a escolher tomates, eu a comparar preços das maçãs — senti uma centelha que me assustou. Conversámos sobre receitas, sobre os preços absurdos do peixe, sobre como as pessoas já não têm tempo para nada. Ele convidou-me para um café e eu aceitei. Foi tudo tão natural que parecia irreal.
Durante meses, vivemos um romance discreto. Passeios à beira-rio, jantares simples em minha casa ou na dele, risos partilhados por coisas pequenas. Senti-me viva outra vez. Até ao dia em que ele sugeriu: “Maria, quero que conheças os meus filhos. Quero que se sintam à vontade contigo.”
O jantar foi marcado para um sábado. Inês chegou primeiro, de cara fechada e olhar desconfiado. O João veio depois, mais calado ainda, quase sem me dirigir a palavra. Senti-me uma intrusa na própria casa do Miguel.
— Então, Maria, já pensou em casar com o nosso pai? — perguntou Inês durante o jantar, com um sorriso cínico.
— Não… não está nos meus planos — respondi, atrapalhada.
— Pois… é que já vimos este filme antes — murmurou João.
Miguel tentou desanuviar o ambiente, mas percebi logo que não seria fácil conquistar aqueles dois. Nos dias seguintes, Inês começou a aparecer mais vezes na casa do pai. Ora vinha “ajudar” com as compras, ora vinha “ver se estava tudo bem”. Mas eu sentia o peso do seu julgamento em cada gesto.
Uma tarde, ouvi-a ao telefone na varanda:
— Não percebo o que ele vê nela… Está só atrás da reforma dele, de certeza.
Senti um nó na garganta. Nunca precisei de nada de ninguém; trabalhei toda a vida como professora primária e tenho a minha pensão. Mas como explicar isso a quem já decidiu não gostar de mim?
Contei tudo à minha filha Sofia numa chamada longa e chorosa.
— Mãe, tu tens direito a ser feliz — disse ela. — Não deixes que te façam sentir menos do que és.
Mas as palavras dela não me protegiam dos olhares cortantes de Inês nem do silêncio desconfortável de João.
Com o tempo, Miguel começou a mudar também. Já não me abraçava com tanta espontaneidade quando os filhos estavam por perto. Evitava conversas sobre o futuro. Uma noite, depois de um jantar especialmente tenso, desabafei:
— Miguel… isto não está a resultar. Os teus filhos não me aceitam e eu sinto-me cada vez mais sozinha aqui.
Ele suspirou fundo:
— Maria… eles perderam a mãe há pouco tempo. Ainda estão magoados… Dá-lhes tempo.
Mas quanto tempo? E quem me devolve os anos que passei sozinha à espera de voltar a ser feliz?
Numa manhã chuvosa de novembro, decidi afastar-me por uns dias. Fui para casa da minha irmã em Aveiro. Lá chorei tudo o que tinha para chorar. Senti raiva dos filhos do Miguel, mas também inveja deles — pelo menos tinham um ao outro.
A minha irmã foi dura comigo:
— Maria, tu sempre foste forte. Não deixes que te empurrem para fora da vida dele só porque têm medo de perder o pai.
Voltei para Lisboa decidida a enfrentar tudo de frente. Liguei ao Miguel:
— Ou aceitamos juntos esta luta ou cada um segue o seu caminho.
Ele apareceu em minha casa nessa noite, com um ramo de flores e olhos vermelhos de tanto chorar.
— Não quero perder-te — disse-me baixinho.
Marcámos um jantar com Inês e João. Falei-lhes com toda a honestidade:
— Eu não vim substituir ninguém. Só quero fazer parte desta família se vocês quiserem abrir espaço para mim.
Inês chorou pela primeira vez à minha frente.
— Tenho medo de perder o meu pai — confessou ela.
Abracei-a como se fosse minha filha. João ficou calado, mas vi nos olhos dele uma faísca de compreensão.
As coisas não mudaram da noite para o dia. Ainda há silêncios desconfortáveis e olhares atravessados. Mas agora há também pequenos gestos: uma mensagem da Inês a perguntar se preciso de alguma coisa; um convite do João para irmos todos ao teatro.
Aprendi que recomeçar nunca é fácil — sobretudo quando já se perdeu tanto pelo caminho. Mas também percebi que a felicidade é feita destes momentos imperfeitos e corajosos.
Às vezes pergunto-me: quantas vezes deixamos de lutar pela nossa felicidade por medo do julgamento dos outros? E vocês? Já sentiram que tiveram de escolher entre o vosso coração e as expectativas da família?