Depois da Morte do Eduardo: Dívidas, Segredos e o Inesperado Apoio da Sogra
— Maria do Céu, não podes continuar assim. — A voz da minha sogra, Dona Amélia, cortou o silêncio pesado da sala. Eu estava sentada no sofá, rodeada de papéis espalhados pela mesa de jantar, as mãos trémulas a tentar decifrar números e palavras que me pareciam um idioma estrangeiro. — O Eduardo nunca te deixaria nesta situação se pudesse evitar.
Olhei para ela, os olhos vermelhos de tanto chorar desde o funeral. O cheiro a café forte misturava-se com o perfume antigo de lavanda que ela usava sempre. — Mas deixou, Dona Amélia. Ele deixou-me tudo isto… — Apontei para as cartas do banco, as ameaças de penhora, as contas por pagar. — Eu nem sabia que tínhamos dívidas. Sempre confiei nele.
Ela sentou-se ao meu lado, pousando a mão enrugada sobre a minha. — O meu filho era orgulhoso. Nunca quis preocupar-te. Mas agora tens de ser forte, Maria do Céu. Por ti. Pela Rita.
A Rita, a nossa filha única, tinha vinte e seis anos e vivia em Lisboa. No funeral do pai, mal me olhou nos olhos. Desde então, só me ligava para perguntar se eu precisava de alguma coisa — mas nunca vinha cá. Senti-me sozinha como nunca antes.
Naquela noite, depois de Dona Amélia ir embora, sentei-me na cama vazia e chorei até adormecer. Sonhei com o Eduardo a sorrir-me do outro lado da mesa da cozinha, como fazia todas as manhãs durante quarenta anos. Acordei com o coração apertado e uma sensação de traição.
Os dias seguintes foram um turbilhão de telefonemas e visitas ao banco. Descobri que o Eduardo tinha pedido empréstimos para ajudar o irmão mais novo, o Tó Zé, que perdera tudo no negócio das obras. Descobri também que hipotecara a casa sem me dizer nada.
— Não posso acreditar que ele fez isto… — desabafei com a minha irmã, a Teresa, ao telefone.
— O Eduardo era bom homem, mas às vezes os homens fazem disparates por orgulho — respondeu ela. — Vais precisar de ajuda.
Mas ninguém parecia disposto a ajudar. O Tó Zé desapareceu do mapa assim que soube das dívidas. Os amigos do Eduardo evitavam-me na rua. Até a Rita começou a atender as minhas chamadas com impaciência.
— Mãe, eu tenho a minha vida! Não posso largar tudo para ir aí resolver os teus problemas! — gritou ela numa dessas conversas.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Era como se todos me tivessem virado as costas.
Foi então que Dona Amélia apareceu à porta numa manhã chuvosa, com uma pasta preta na mão.
— Vem comigo ao banco — disse ela sem rodeios.
No banco, sentou-se ao meu lado e falou com uma firmeza que eu nunca lhe conhecera:
— O meu filho pode ter feito disparates, mas não vou deixar que fiquem na rua por causa disso. Tenho algum dinheiro posto de parte desde que o meu marido morreu. Vamos negociar isto.
Fiquei sem palavras. Sempre pensei nela como uma mulher fria e distante, mas ali estava ela, a lutar por mim como se fosse sua filha.
As semanas seguintes foram duras. Vendemos o carro velho do Eduardo, desfiz-me das jóias da família e Dona Amélia usou as suas poupanças para pagar parte das dívidas mais urgentes. Fui trabalhar para uma padaria local — depois de quarenta anos como dona de casa — e aprendi a viver com pouco.
A relação com a Rita piorou antes de melhorar. Quando soube que eu estava a trabalhar atrás do balcão da padaria, ligou-me furiosa:
— Achas que é assim que vais resolver tudo? Não tens vergonha?
— Vergonha? Vergonha tenho eu de ter criado uma filha que não percebe o que é lutar pela família! — respondi-lhe num impulso.
Houve silêncio do outro lado da linha. Depois disso, passaram-se semanas sem notícias dela.
Foi Dona Amélia quem me segurou nos piores dias. Sentávamo-nos juntas à noite, depois do jantar simples, e ela contava-me histórias do tempo em que era jovem e teve de criar três filhos sozinha durante a guerra colonial.
— A vida nunca é justa — dizia ela. — Mas é nas dificuldades que vemos quem está connosco de verdade.
Um dia, ao chegar à padaria, encontrei um envelope em cima do balcão com o meu nome escrito à mão. Lá dentro estava uma carta da Rita:
“Mãe,
Desculpa por tudo o que disse e fiz nestes meses. Fugi porque não sabia lidar com a dor nem com a vergonha. Agora percebo o quanto és forte e corajosa. Quero ajudar-te a recomeçar.”
Chorei ali mesmo, entre os pães ainda quentes e o cheiro doce dos bolos acabados de fazer.
A Rita voltou para casa pouco depois. Começámos devagarinho a reconstruir a nossa relação. Ela ajudou-me a organizar as contas e arranjou um trabalho em teletrabalho para poder estar mais tempo comigo.
O Tó Zé nunca mais apareceu. Os amigos antigos do Eduardo continuaram distantes. Mas eu aprendi que família nem sempre é quem partilha o sangue connosco — às vezes é quem fica quando todos os outros vão embora.
Hoje vivo numa casa mais pequena com Dona Amélia e a Rita. Não temos luxos, mas temos paz e respeito umas pelas outras. Às vezes ainda sonho com o Eduardo e pergunto-me se ele teria feito diferente se soubesse o sofrimento que nos causou.
Mas aprendi algo valioso: mesmo quando tudo parece perdido, há sempre alguém capaz de surpreender-nos — até quem menos esperamos.
E vocês? Já foram surpreendidos por alguém em quem nunca pensaram poder confiar? Será que conhecemos mesmo quem está ao nosso lado?