Depois da Festa: Entre Sogras, Noras e Silêncios
— Obrigada, Mariana, obrigada, Vera. Sem vocês, nada disto teria sido possível — disse a minha sogra, Dona Lurdes, com aquele sorriso que nunca sei se é sincero ou apenas uma máscara para os outros verem. O salão ainda cheirava a bacalhau com natas e vinho tinto barato. As crianças corriam pelo corredor, rindo alto, enquanto os homens discutiam futebol na varanda.
Eu sorri de volta, mas por dentro sentia-me vazia. Olhei para Vera, a outra nora, que me devolveu um olhar rápido, cúmplice e cansado. Sabíamos ambas o que aquelas palavras queriam dizer: éramos úteis, mas nunca essenciais. A festa era da família do meu marido, Rui, e eu era apenas a mulher dele. A Vera era a mulher do Pedro. E Dona Lurdes era o centro de tudo — ou pelo menos gostava de pensar que era.
Enquanto arrumava os pratos na cozinha, ouvi a voz da minha sogra atrás de mim:
— Mariana, não te esqueças de guardar o bolo na arca. E vê se limpas bem a bancada, sim?
A Vera apareceu ao meu lado e começou a secar os copos sem dizer palavra. O silêncio entre nós era pesado, mas confortável — como se ambas soubéssemos que não valia a pena fingir entusiasmo.
— Achas que ela alguma vez vai gostar realmente de nós? — sussurrou Vera, baixinho.
Encolhi os ombros.
— Não sei. Às vezes acho que somos só mais duas empregadas aqui em casa dela.
Vera sorriu tristemente.
— Pelo menos temos uma à outra.
Ouvimos passos. A Dona Lurdes entrou de novo na cozinha, desta vez com um ar mais sério.
— Meninas, não se esqueçam que amanhã é preciso limpar o quintal. O António vai trazer lenha e não quero nada fora do sítio.
Assenti em silêncio. Vera também. Era sempre assim: festas, agradecimentos formais e depois uma lista interminável de tarefas. Os nossos maridos raramente ajudavam — diziam que estavam cansados do trabalho ou que “isso são coisas de mulheres”.
Quando finalmente consegui sair para o jardim, sentei-me num banco de pedra e respirei fundo. O ar estava frio e húmido, típico das noites de março em Braga. Lembrei-me da minha mãe, lá em Viseu, sempre tão diferente da Dona Lurdes: calorosa, direta, sem jogos nem indiretas.
O Rui apareceu ao meu lado.
— Estás bem? — perguntou, distraído, enquanto mexia no telemóvel.
— Estou — menti.
Ele não percebeu. Nunca percebe. Para ele, tudo corre bem desde que haja comida na mesa e a mãe esteja satisfeita.
Naquela noite, em casa, não consegui dormir. Ouvia a respiração tranquila do Rui e sentia-me cada vez mais sozinha. Peguei no telemóvel e escrevi uma mensagem à Vera:
“Ainda acordada?”
A resposta veio quase de imediato:
“Sim. Não consigo parar de pensar na festa. Sinto-me invisível.”
Ficámos a trocar mensagens durante horas. Descobri que ela também sentia o mesmo: aquela sensação de nunca pertencer verdadeiramente àquela família. De sermos sempre as forasteiras, as que vieram de fora para ocupar um lugar que nunca seria nosso.
No dia seguinte, acordei cedo para ajudar no quintal. A Dona Lurdes já estava lá fora, a dar ordens ao António e a reclamar do frio.
— Mariana! Anda cá! Preciso que me ajudes com estas caixas.
Obedeci sem protestar. A Vera chegou pouco depois, com olheiras profundas e um ar resignado.
Enquanto arrumávamos tudo, ouvi a Dona Lurdes a falar com uma vizinha:
— As noras são boas raparigas, mas não têm jeito nenhum para estas coisas. No meu tempo fazia-se tudo sem reclamar…
Senti o sangue ferver-me nas veias. Quis responder, mas calei-me. Não valia a pena criar mais conflitos — já bastava o ambiente pesado que pairava sempre sobre nós.
Ao almoço desse domingo, o Pedro fez uma piada sobre as mulheres serem “mandonas” e toda a gente riu menos eu e a Vera. Olhámo-nos outra vez: cúmplices no silêncio.
Mais tarde nesse dia, depois de todos terem ido embora, fiquei sozinha com a Dona Lurdes na cozinha. Ela olhou para mim com um ar estranho — como se quisesse dizer algo importante mas não soubesse por onde começar.
— Mariana… tu gostas mesmo do Rui?
Fiquei surpreendida pela pergunta tão direta.
— Claro que gosto. Porquê?
Ela suspirou.
— Às vezes parece que estás aqui por obrigação… Não quero que te sintas assim.
Fiquei sem saber o que responder. Era verdade: muitas vezes sentia-me ali apenas porque era o esperado de mim — ser boa esposa, boa nora, boa mãe. Mas será que alguém ali se preocupava realmente com o que eu sentia?
Na semana seguinte, decidi convidar a Vera para tomar um café fora dali — longe das paredes daquela casa onde tudo parecia pesar mais.
Sentámo-nos numa esplanada junto ao rio e falámos durante horas sobre tudo: os sonhos adiados, as saudades das nossas famílias, as pequenas alegrias roubadas entre tarefas domésticas e obrigações familiares.
— Sabes — disse-lhe eu — às vezes sinto que só existo aqui para servir os outros. Que ninguém me vê realmente.
A Vera assentiu.
— Eu também. Mas pelo menos temos uma à outra para desabafar.
Nesse momento percebi que talvez não estivéssemos tão sozinhas quanto pensávamos. Que havia ali uma amizade possível — uma aliança silenciosa entre duas mulheres presas nas mesmas expectativas e tradições antigas.
Combinámos começar a sair mais vezes juntas — nem que fosse só para fugir um pouco daquela rotina sufocante.
Os meses passaram e as festas continuaram — aniversários, batizados, almoços de domingo. A Dona Lurdes continuava igual: agradecia-nos sempre no final mas nunca deixava de nos lembrar do nosso lugar.
Certa tarde, depois de mais uma dessas reuniões familiares em que me senti invisível, decidi confrontar o Rui:
— Alguma vez pensaste no que eu sinto aqui? Alguma vez te perguntaste se sou feliz nesta família?
Ele ficou surpreendido pela minha franqueza.
— Pensei que estavas bem… Nunca disseste nada.
— Porque nunca me perguntaste!
Discutimos durante horas — pela primeira vez em anos pus tudo cá para fora: as mágoas acumuladas, o cansaço de ser sempre “a nora”, nunca “a filha”; o peso das expectativas; a solidão disfarçada de rotina familiar.
O Rui ficou calado durante muito tempo depois disso. Mas aos poucos começou a mudar pequenas coisas: ajudava mais em casa; defendia-me quando a mãe fazia comentários desagradáveis; perguntava-me como estava realmente.
A relação com a Dona Lurdes nunca foi perfeita — talvez nunca venha a ser. Mas aprendi a impor limites e a valorizar as pequenas vitórias: um sorriso sincero da Vera; um gesto de carinho do Rui; um momento só meu ao final do dia.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem assim — presas entre papéis impostos e sonhos adiados? Quantas se sentem invisíveis nas suas próprias famílias? E será que algum dia conseguiremos ser mais do que apenas figurantes na vida uns dos outros?