Deixe-me Viver – O Grito de Liberdade Entre Mãe e Filha

— Não, Inês! Não vais sair assim vestida! — gritei da porta do quarto, a voz embargada pelo medo e pela raiva. O relógio da sala marcava 22h15, e o silêncio da casa parecia amplificar cada batida do meu coração. Inês olhou-me com aqueles olhos castanhos, tão parecidos com os meus, mas cheios de uma coragem que eu nunca tive.

— Mãe, tenho 19 anos. Não podes continuar a controlar tudo na minha vida! — respondeu ela, a voz trémula, mas firme. Senti o chão fugir-me dos pés. O eco das palavras dela ficou a pairar no ar, como se cada sílaba fosse uma faca a cortar o pouco de ligação que ainda restava entre nós.

A verdade é que sempre temi perder a minha filha. Desde que o pai dela nos deixou, quando Inês tinha apenas cinco anos, tornei-me mãe e pai, amiga e carcereira. O medo de que algo lhe acontecesse era maior do que qualquer desejo de liberdade que ela pudesse ter. Cresci em Lisboa, numa família tradicional, onde as mulheres aprendiam cedo a sacrificar-se pelos outros. A minha mãe dizia: “Filha, protege os teus como se fossem o teu próprio coração.” E eu levei isso ao extremo.

Quando Inês entrou na adolescência, começaram as discussões. Lembro-me de uma noite em particular, quando ela chegou tarde da escola porque tinha ido estudar com colegas. Eu estava sentada à mesa da cozinha, as mãos frias agarradas à chávena de chá.

— Onde estiveste? — perguntei, tentando soar calma.

— Fui estudar com a Mariana e o Tiago. Já te disse mil vezes que não tens de te preocupar tanto! — respondeu ela, largando a mochila no chão.

— Não conheço esses rapazes. E se te acontece alguma coisa? — insisti.

Ela revirou os olhos e subiu para o quarto sem dizer mais nada. Fiquei ali sentada, sozinha, a olhar para a porta fechada. Senti-me ridícula, mas não conseguia evitar.

Os anos passaram e o ciclo repetiu-se: festas recusadas, namorados afastados com olhares desconfiados, viagens de finalistas proibidas. Cada “não” era um tijolo no muro que construí entre nós. Mas eu só queria protegê-la do mundo — desse mundo que me tinha roubado tanto.

A gota de água foi naquela noite de verão em que Inês me disse que queria ir viver sozinha para o Porto, estudar Belas-Artes. O meu coração apertou-se como se alguém o tivesse esmagado com as mãos.

— Não podes ir! Sozinha numa cidade grande? E se te acontece alguma coisa? — supliquei.

— Mãe, não posso viver presa aqui! Preciso respirar! — gritou ela, lágrimas nos olhos.

A discussão foi tão intensa que os vizinhos bateram à porta para perguntar se estava tudo bem. Depois disso, Inês deixou de falar comigo durante semanas. A casa ficou vazia, fria. Eu andava pelos corredores como um fantasma, ouvindo ecos de risos antigos e sentindo o peso da culpa a esmagar-me o peito.

Comecei a questionar tudo: teria sido demasiado dura? Teria sufocado a minha filha com o meu amor? Ou era apenas uma mãe apavorada com a ideia de ficar sozinha?

Um dia, encontrei uma carta no quarto dela. Era dirigida a mim:

“Mãe,

Sei que me amas mais do que tudo neste mundo. Mas preciso viver a minha vida, cometer os meus erros e aprender com eles. Não quero fugir de ti, só quero encontrar-me a mim mesma. Espero que um dia consigas entender. Amo-te sempre.

Inês”

Chorei durante horas agarrada àquela folha de papel. Pela primeira vez percebi que o meu amor podia ser uma prisão para ela. Decidi procurá-la no Porto. Apanhei o comboio com as mãos a tremer e o coração aos saltos.

Quando bati à porta do pequeno apartamento onde ela vivia com colegas, Inês abriu-a com surpresa nos olhos.

— Mãe? O que fazes aqui?

— Vim pedir-te desculpa — disse eu, a voz embargada pelas lágrimas. — Só queria proteger-te… mas percebo agora que te estava a prender.

Ela abraçou-me como há muito não fazia. Chorámos juntas no corredor estreito daquele prédio antigo.

Desde então, tento aprender a deixar ir. Ainda me custa vê-la partir para novas aventuras sem saber se vai voltar bem. Mas aprendi que amar também é confiar — confiar que dei asas suficientes para voar e raízes fortes para voltar.

Hoje olho para trás e pergunto-me: fui uma boa mãe ou apenas uma mulher apavorada com a solidão? Quantas vezes o nosso amor sufoca quem mais queremos proteger? E vocês — já sentiram este medo de perder quem mais amam?