Deixando a Minha Família Para Trás: O Meu Irmão Diz Que Sou Egoísta, Mas Não Me Arrependo
— Vais mesmo deixar-nos assim, Miguel? — A voz do meu irmão, Rui, ecoava pela cozinha fria, carregada de raiva e desespero.
Eu não consegui responder de imediato. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o aroma da terra húmida que entrava pela janela aberta. O relógio na parede marcava seis da manhã, mas eu já estava acordado há horas, a ensaiar mentalmente todas as respostas possíveis para aquela pergunta.
— Rui, eu preciso disto. Não aguento mais esta vida — murmurei, evitando o olhar dele. As minhas mãos tremiam enquanto apertava a alça da mochila. Lá fora, os galos já cantavam e as vacas mugiam, exigindo a rotina de sempre.
A nossa mãe, Maria do Céu, estava sentada à mesa, os olhos fundos e vermelhos de tanto chorar durante a noite. Ela não dizia nada. Apenas olhava para mim como se quisesse gravar cada traço do meu rosto antes de eu partir.
— Precisas? E nós? Achas que isto é fácil para mim ou para a mãe? — Rui levantou-se de rompante, a cadeira arrastando-se pelo chão de pedra. — Sempre foste egoísta, Miguel. Sempre pensaste só em ti.
As palavras dele cortaram-me como facas. Mas eu sabia que não podia ficar. A quinta estava a definhar. O dinheiro mal dava para pagar as contas e a escola do meu irmão mais novo tinha sido interrompida porque não havia como pagar os livros. Eu era o mais novo, mas sentia-me sufocado por uma responsabilidade que nunca pedi.
Lembro-me de ser criança e correr pelos campos atrás das galinhas, enquanto a mãe gritava para não sujar as calças. O Rui era sempre o responsável, o que ajudava a ordenhar as vacas e a tratar da horta. Eu era o sonhador, aquele que lia livros emprestados pela professora primária e imaginava uma vida diferente, longe dali.
Quando terminei o secundário, recusei-me a aceitar que o meu destino era ficar ali para sempre. Vi amigos partirem para Lisboa, outros para França ou Suíça. Eu queria mais. Queria sentir que a minha vida tinha um propósito além de sobreviver dia após dia.
Na noite anterior à minha partida, sentei-me com a mãe na varanda. O céu estava limpo e as estrelas brilhavam como nunca.
— Miguel, tens a certeza? — perguntou ela, com a voz embargada.
— Tenho, mãe. Não posso continuar aqui. Preciso tentar algo diferente. Se correr mal… volto — prometi-lhe, embora soubesse que voltar seria admitir o fracasso.
Ela segurou-me a mão com força.
— Só te peço uma coisa: não te esqueças de nós.
Na manhã seguinte, depois da discussão com o Rui, saí pela porta da frente sem olhar para trás. O autocarro para Lisboa partia às sete e meia. Sentei-me junto à janela e vi o vilarejo desaparecer no horizonte, sentindo um misto de alívio e culpa.
Lisboa era tudo aquilo que eu imaginava e mais ainda: ruas cheias de gente apressada, prédios altos, luzes por todo o lado. Arranjei trabalho numa pastelaria em Alfama e aluguei um quarto minúsculo num apartamento partilhado com outros três rapazes vindos do interior.
Os primeiros meses foram duros. Trabalhava doze horas por dia por um salário miserável. Sentia saudades da comida da mãe, do cheiro da terra molhada depois da chuva, até das discussões com o Rui. Mas também sentia uma liberdade que nunca conhecera antes.
Telefonava à mãe todas as semanas. Ela contava-me das dificuldades na quinta: uma vaca adoeceu, o preço do leite baixou ainda mais, o Rui andava calado e distante. Eu ouvia tudo em silêncio, sentindo-me cada vez mais culpado por não estar lá para ajudar.
Um dia recebi uma chamada inesperada do Rui.
— Preciso falar contigo — disse ele sem rodeios.
— Está tudo bem? — perguntei, já com o coração apertado.
— Não está nada bem! A mãe caiu e partiu o braço. Estou sozinho aqui com tudo! Achas isto justo?
Fiquei sem palavras. O peso da responsabilidade caiu-me em cima como uma avalanche. Pensei em largar tudo e voltar. Mas depois lembrei-me do porquê de ter partido: queria construir algo meu, queria quebrar o ciclo de sacrifício sem recompensa.
— Rui… eu não consigo voltar agora. Estou a tentar arranjar um trabalho melhor… talvez consiga mandar algum dinheiro em breve — tentei justificar-me.
Ele desligou sem responder.
A partir desse dia, as chamadas tornaram-se menos frequentes. A mãe tentava manter as aparências ao telefone, mas percebia-se que estava cansada e triste.
Passaram-se dois anos. Consegui um emprego melhor numa empresa de informática depois de estudar à noite e fazer cursos online. Comecei finalmente a enviar algum dinheiro para casa todos os meses. Mas a distância entre mim e o Rui tornou-se um abismo.
No Natal desse ano decidi voltar à aldeia pela primeira vez desde que partira. Quando cheguei, senti um nó na garganta ao ver a casa envelhecida e os campos meio abandonados. A mãe recebeu-me com um abraço apertado e lágrimas nos olhos.
O Rui estava diferente: mais magro, olhar duro. Durante o jantar quase não falou comigo.
Depois da ceia, fui ter com ele ao quintal.
— Desculpa… Sei que te deixei sozinho com tudo — disse-lhe baixinho.
Ele olhou para mim durante uns segundos intermináveis antes de responder:
— Não percebes mesmo? Não é só por teres ido embora… É porque nunca olhaste para trás. Nunca perguntaste se eu também queria sair daqui…
Fiquei sem resposta. Nunca me tinha ocorrido que ele também pudesse sonhar com outra vida.
Naquela noite não dormi. Fiquei a pensar em tudo o que deixei para trás: não só a quinta e a família, mas também os sonhos dos outros que nunca quis ver.
Hoje vivo em Lisboa, tenho uma vida estável e ajudo financeiramente a minha família sempre que posso. Mas sei que há feridas que talvez nunca cicatrizem completamente.
Às vezes pergunto-me: será possível seguir os nossos sonhos sem magoar quem amamos? Ou será inevitável deixar alguém para trás quando escolhemos nós próprios?