Dei o terreno dos meus pais à minha irmã — hoje ela foge de mim: será a gratidão um fardo tão pesado?
— Não percebes, Leonor? Eu preciso mesmo daquele terreno! — A voz da Zélia ecoava pela cozinha, cortando o silêncio pesado que se instalara desde o funeral do pai.
Eu olhava para as minhas mãos, pousadas no tampo frio da mesa. O cheiro do café já frio misturava-se com o aroma das flores ainda frescas do velório. Senti um nó na garganta, mas não consegui responder logo. Ouvia a minha irmã andar de um lado para o outro, impaciente, como sempre fora.
— Zélia, eu sei… — murmurei, tentando encontrar as palavras certas. — Mas é tudo o que nos resta dos pais. Não achas que devíamos decidir juntas?
Ela parou à minha frente, os olhos brilhantes de lágrimas e raiva. — Tu não precisas disto, Leonor! Tens o teu emprego, a tua vida certinha. Eu… eu estou sozinha com o Tomás e a Marta. O Pedro foi-se embora, lembras-te? Preciso de construir alguma coisa para eles. Não me podes tirar isto.
A verdade é que sempre fomos diferentes. A Zélia era tempestade; eu, bonança. Ela gritava, eu calava. Ela decidia, eu cedia. A mãe dizia que eu era a que “fazia as pazes”, enquanto a Zélia “fazia as guerras”. Mas éramos irmãs e, apesar de tudo, havia amor entre nós.
Quando os nossos pais morreram com poucos meses de diferença — primeiro o pai, depois a mãe — senti-me perdida. A casa ficou vazia de repente, e só restávamos nós duas para decidir o futuro do pequeno terreno em Sintra que eles tinham comprado com tanto sacrifício. Era pouco mais do que um pedaço de terra com uma oliveira antiga e um poço seco, mas para mim era o último elo com a infância.
A Zélia precisava daquele terreno mais do que eu? Talvez sim. O marido tinha-a deixado com dois filhos pequenos e dívidas até ao pescoço. Eu tinha um emprego estável como professora primária em Lisboa e vivia sozinha num T2 arrendado. Não era rica, mas conseguia pagar as contas.
— Fica com o terreno, Zélia — disse-lhe finalmente, sentindo uma estranha mistura de alívio e tristeza. — Se achas que é o melhor para ti e para os miúdos… eu abdico da minha parte.
Ela olhou para mim como se não acreditasse. — A sério? Vais mesmo fazer isso?
Assenti em silêncio. Ela abraçou-me com força, chorou no meu ombro e prometeu que nunca se esqueceria do que eu fizera por ela.
Nos meses seguintes, ajudei-a a tratar dos papéis da herança, fui com ela à conservatória, ao notário, ao banco. Vi-a sorrir pela primeira vez em muito tempo quando recebeu as chaves do portão enferrujado do terreno.
— Um dia havemos de fazer aqui piqueniques com os miúdos — disse-me ela, entusiasmada. — Vais ver!
Acreditei nela. Quis acreditar.
Mas os dias passaram e as promessas ficaram por cumprir. A Zélia começou a afastar-se. Primeiro eram as desculpas: “Esta semana não posso, Leonor, tenho imenso trabalho”; “Os miúdos estão doentes”; “O carro avariou”. Depois vieram os silêncios: mensagens sem resposta, chamadas não atendidas.
No Natal desse ano, esperei por ela na casa da mãe, onde combinámos trocar presentes. Fiquei sentada à mesa posta até às dez da noite. Só recebi uma mensagem curta: “Desculpa, Leonor, não conseguimos ir”.
No início tentei compreender. Talvez estivesse ocupada a reconstruir a vida. Talvez sentisse vergonha por me ter ficado a dever algo tão grande. Mas à medida que os meses passavam e o vazio crescia entre nós, comecei a sentir uma dor surda no peito.
A vizinha da rua dos meus pais contou-me um dia que vira a Zélia no terreno com um homem — “um senhor alto, de cabelo grisalho” — e que pareciam muito felizes.
— Ela já lá vai pouco — disse-me a vizinha. — Mas quando vai, é sempre com ele.
Senti uma pontada de ciúme e tristeza. Não era pelo terreno em si; era pela distância que agora nos separava.
Um domingo decidi ir até lá sozinha. O portão estava trancado com um cadeado novo. Olhei por entre as grades: a oliveira continuava lá, mas o poço estava tapado com uma lona azul e havia brinquedos espalhados pelo chão.
Fiquei ali parada uns minutos, sentindo-me uma intrusa na minha própria memória.
Na segunda-feira seguinte liguei-lhe:
— Zélia? Podemos falar?
Ela atendeu ao fim de vários toques.
— Estou ocupada agora, Leonor. Depois ligo-te.
Nunca ligou.
As semanas transformaram-se em meses. Os aniversários dos sobrinhos passaram sem convite; as festas de família tornaram-se encontros onde eu era apenas uma sombra no fundo da sala.
Um dia encontrei-a por acaso no supermercado do bairro. Ela estava com o tal homem alto e os filhos. Quando me viu, hesitou um segundo antes de sorrir forçadamente.
— Olá, Leonor! — disse ela, apressada. — Desculpa, estamos mesmo com pressa…
Os miúdos olharam para mim sem reconhecerem a tia que lhes dera metade do passado deles.
Saí dali com as compras esquecidas no carrinho e uma vontade imensa de chorar.
Perguntei-me mil vezes se tinha feito bem em abdicar do terreno. Se devia ter lutado mais pelo pouco que restava dos nossos pais. Se devia ter exigido respeito ou pelo menos gratidão.
Mas depois lembrava-me da Zélia em lágrimas naquela cozinha fria e pensava: talvez algumas pessoas não saibam lidar com dívidas emocionais. Talvez a gratidão seja um fardo demasiado pesado para quem sempre precisou de lutar sozinha.
Hoje vivo sozinha no meu T2 arrendado em Lisboa. Dou aulas a crianças que me contam segredos e sonhos todos os dias. Às vezes passo pelo terreno em Sintra só para ver se a oliveira ainda resiste ao tempo.
Não sei se algum dia voltarei a ser próxima da minha irmã como antes. Não sei se ela algum dia me perdoará por lhe ter dado aquilo que mais precisava — ou se me perdoarei por ter deixado ir embora o último pedaço dos meus pais.
Pergunto-me muitas vezes: será que fiz bem? Será que há gestos tão grandes que acabam por afastar quem mais amamos? E vocês? Já sentiram que a vossa generosidade vos isolou?