De Repente, Percebi Que Após o Divórcio Não Me Restaria Nada. Nem o Carro.
— Não percebes, Inês? O carro está no meu nome. A casa também. — A voz do Ricardo ecoou fria pela sala, enquanto eu apertava os punhos para não tremer.
Nunca pensei que as palavras dele pudessem doer tanto. Durante anos, ignorei os pequenos sinais: as conversas interrompidas quando eu entrava na sala, os olhares trocados entre ele e a mãe dele, Dona Lurdes, sempre tão crítica comigo. Mas agora, tudo fazia sentido. Eu estava sozinha. E pior: estava prestes a perder tudo.
Lembro-me de quando conheci o Ricardo, há quase dez anos, numa festa de São João no Porto. Ele era encantador, fazia-me rir como ninguém. Trabalhava numa empresa de informática e dizia sempre que queria construir uma vida comigo. Eu, recém-formada em Psicologia, acreditava em cada palavra dele. Talvez tenha sido esse o meu maior erro: acreditar.
Os primeiros anos foram felizes, ou pelo menos eu achava que sim. Comprámos um apartamento pequeno em Matosinhos e um carro usado — um Renault Clio azul que eu adorava. Tudo estava no nome dele porque, segundo ele, era mais fácil para o crédito. “Confia em mim, Inês”, dizia-me sempre.
Mas a confiança é uma coisa frágil. Começou com pequenas discussões sobre dinheiro. Depois vieram as ausências: reuniões de trabalho que se prolongavam até tarde, fins de semana “com os amigos”. Eu tentava justificar tudo: “Ele trabalha muito para nos dar uma vida melhor”. Mas a verdade é que ele já não olhava para mim da mesma forma.
A gota de água foi quando encontrei uma mensagem no telemóvel dele. “Amanhã às 19h? Mal posso esperar para te ver.” O nome era apenas “Sofia”. Confrontei-o naquela noite.
— Quem é a Sofia?
Ele suspirou, como se estivesse cansado de mim.
— É só uma colega do trabalho, Inês. Estás a ser paranoica.
Mas eu sabia que não era só isso. Senti-me ridícula por ter acreditado nele durante tanto tempo.
Quando finalmente decidi pedir o divórcio, achei que pelo menos ficaria com alguma coisa. Afinal, metade do que tínhamos era meu, certo? Errado.
— O carro está no meu nome, Inês. A casa também. — Repetiu ele, desta vez mais devagar, como se estivesse a explicar algo a uma criança.
— Mas eu paguei metade das prestações! — gritei, sentindo as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto.
Ele encolheu os ombros.
— Não tens como provar.
Foi aí que percebi: durante todos aqueles anos, eu tinha sido ingénua. Nunca exigi recibos, nunca pedi para pôr nada em meu nome. Confiava nele cegamente. E agora estava ali, sentada no sofá da sala que já não era minha, a ouvir o homem que amei dizer-me que não tinha direito a nada.
A minha mãe sempre me avisou:
— Inês, protege-te. Não ponhas tudo nas mãos de um homem.
Mas eu achava que ela era antiquada, desconfiada demais. Agora percebia que ela só queria proteger-me.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. Tive de voltar para casa dos meus pais, em Vila Nova de Gaia. Aos 34 anos, sentia-me uma falhada. O meu pai tentava animar-me:
— Vais ver que tudo se resolve, filha. És forte.
Mas eu não me sentia forte. Sentia-me vazia.
O processo do divórcio foi humilhante. O advogado dele era frio e calculista. O meu advogado fazia o possível, mas sem provas escritas de que eu tinha contribuído para as despesas da casa e do carro, pouco podia fazer.
A Dona Lurdes aproveitou para me humilhar sempre que podia:
— Sempre soube que não eras mulher para o meu filho. Agora vê-se bem quem és: uma interesseira!
Quis responder-lhe, mas calei-me. Não valia a pena discutir com ela.
Os meus amigos afastaram-se aos poucos. Alguns porque eram mais amigos dele do que meus; outros porque não sabiam lidar com o meu sofrimento. Só a Joana ficou ao meu lado:
— Inês, tu não és aquilo que perdeste. És muito mais do que isso.
Foram meses difíceis. Arranjei um trabalho novo numa clínica de psicologia infantil — um contrato precário, mas pelo menos era alguma coisa. Ia todos os dias de metro porque já não tinha carro. Cada viagem era um lembrete daquilo que perdi.
Uma noite, depois de um dia particularmente difícil no trabalho — uma criança tinha tido uma crise de ansiedade e eu sentia-me impotente — cheguei a casa e encontrei a minha mãe à espera na cozinha.
— Tens de reagir, filha. Não podes deixar que ele te destrua assim.
Chorei nos braços dela como uma criança perdida.
Comecei a escrever num diário todas as noites. Escrevia sobre as injustiças, sobre a raiva e sobre o medo do futuro. Aos poucos fui percebendo que precisava de me reconstruir por dentro antes de tentar reconstruir a minha vida lá fora.
Um dia recebi uma mensagem inesperada do Ricardo:
— Podemos falar?
O coração disparou-me no peito. Porquê agora? O divórcio já estava quase finalizado.
Encontrei-o num café perto da antiga casa onde vivíamos juntos. Ele parecia cansado, envelhecido até.
— Inês… — começou ele — Eu… queria pedir desculpa por tudo isto.
Fiquei sem saber o que dizer.
— Não sei se serve de alguma coisa agora — continuou — mas percebi que fui injusto contigo.
Olhei-o nos olhos e vi arrependimento verdadeiro pela primeira vez em anos.
— Não serve de nada agora — respondi calmamente — mas obrigada por dizeres isso.
Saí daquele café com uma sensação estranha: não era felicidade nem tristeza; era alívio.
Os meses passaram e fui encontrando pequenas alegrias: um passeio à beira-mar com a Joana; uma criança da clínica a sorrir para mim depois de semanas sem falar; um livro novo lido numa tarde chuvosa.
Comecei a juntar dinheiro para comprar um carro em segunda mão — nada de especial, mas seria meu e só meu desta vez.
Hoje olho para trás e vejo tudo com outros olhos. Perdi muito naquele divórcio: bens materiais, amigos, até parte da minha autoestima. Mas ganhei algo mais importante: aprendi a confiar em mim mesma e a nunca mais deixar que alguém decida por mim.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres passam pelo mesmo sem nunca terem coragem de recomeçar? E vocês? Já sentiram que perderam tudo para depois descobrirem quem realmente são?