De Filha Querida a Intrusa: O Dia em que o Meu Pai Quis Expulsar-me de Casa
— Não aguento mais esta confusão, Mariana! — gritou o meu pai, a voz a tremer entre a raiva e o cansaço. — Isto não é vida para ninguém! Ou arranjas maneira de sair, ou eu próprio trato disso!
O eco das palavras dele ficou a pairar na sala, mais pesado do que qualquer silêncio. O meu filho, Tiago, olhava para mim com aqueles olhos grandes e assustados, agarrado ao boneco preferido. A minha mãe, sentada à mesa da cozinha, fingia concentrar-se no jornal, mas eu via-lhe as mãos a tremer. O meu irmão mais novo, o Diogo, enfiava-se no quarto, como sempre fazia quando as coisas aqueciam.
Nunca pensei que chegássemos aqui. Sempre fui a filha querida do meu pai, a menina dos olhos dele. Lembro-me de quando ele me levava ao parque da cidade aos domingos e me comprava gelados mesmo quando a minha mãe ralhava por causa das constipações. Mas agora, aos 28 anos, divorciada e de regresso à casa onde cresci, sou vista como um peso. Um incómodo. Uma intrusa.
Tudo começou há dois anos, quando o Pedro me deixou. Disse que precisava de “espaço” e que eu era demasiado “intensa”. Fiquei sozinha com o Tiago e sem dinheiro suficiente para pagar a renda do apartamento em Benfica. A minha mãe abriu-me a porta sem hesitar, mas o meu pai… O meu pai nunca mais foi o mesmo.
— Mariana, não podes continuar assim — dizia ele quase todos os dias. — Tens de arranjar trabalho a sério. Não podes viver à custa dos outros.
Eu tentava explicar-lhe que procurava emprego todos os dias, que enviava currículos para todo o lado — supermercados, escolas, até limpezas em hotéis — mas nada. O país não está fácil para ninguém, muito menos para uma mãe solteira sem família rica ou cunhas.
As discussões começaram a ser diárias. O Diogo, com 16 anos e no 11º ano, precisava de silêncio para estudar. O Tiago fazia birras porque não tinha espaço para brincar. A minha mãe tentava apaziguar tudo, mas acabava sempre a chorar no quarto. E eu… eu sentia-me cada vez mais pequena.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre o barulho do Tiago e as minhas “fugas” para entrevistas de emprego que nunca davam em nada, ouvi o meu pai ao telefone com o tio António:
— Já não sei o que fazer com ela… Está a destruir esta casa. Não é justo para ninguém.
Senti-me traída. Como podia ele falar assim de mim? Eu era a filha dele! Fui para a varanda chorar em silêncio, com medo que o Tiago me ouvisse.
No dia seguinte, tentei falar com ele:
— Pai, preciso que me entendas… Não estou aqui porque quero. Não tenho para onde ir.
Ele olhou-me nos olhos e vi ali uma dureza que nunca tinha visto antes:
— Mariana, eu dei-te tudo o que podia. Agora tens de aprender a viver sozinha. Isto não é um hotel.
A partir daí, tudo piorou. O Diogo começou a chegar mais tarde a casa para evitar os conflitos. A minha mãe fechou-se ainda mais nela própria. E eu comecei a sentir vergonha até de sair à rua — os vizinhos já cochichavam sobre “aquela que voltou para casa dos pais com um filho atrás”.
Uma tarde, depois de uma entrevista falhada num call center em Odivelas, cheguei a casa e encontrei as minhas malas no corredor.
— O que é isto? — perguntei, já com lágrimas nos olhos.
O meu pai respondeu sem me olhar:
— Não aguento mais, Mariana. Tens até ao fim da semana para sair.
A minha mãe tentou intervir:
— António, por favor… Ela não tem para onde ir!
Mas ele cortou-lhe a palavra:
— Chega! Esta casa é pequena demais para tanta gente e tanta confusão!
Senti-me desabar por dentro. O Tiago apareceu atrás de mim e abraçou-me as pernas:
— Mamã… vamos embora?
Como podia explicar-lhe que não tínhamos para onde ir? Que o mundo lá fora era ainda mais cruel do que aquele ambiente sufocante?
Nessa noite não dormi. Fiquei sentada na cama do Tiago a vê-lo respirar devagarinho. Pensei em tudo: nos sonhos que tinha tido quando era miúda — ser professora, viajar pelo mundo — e em como tudo se tinha desmoronado tão depressa.
No dia seguinte fui à Segurança Social pedir ajuda. Disseram-me que havia listas de espera para casas sociais e que talvez conseguisse um subsídio temporário. Saí de lá ainda mais perdida.
Quando voltei a casa, encontrei o Diogo à porta do meu quarto:
— Mana… desculpa não ter dito nada antes. Eu também estou farto disto tudo… Mas não quero que vás embora.
Abracei-o com força. Pela primeira vez em meses senti-me menos sozinha.
Na sexta-feira à noite fiz as malas. A minha mãe chorava baixinho na cozinha. O meu pai estava fechado no quarto dele. O Diogo ajudou-me a levar as malas até ao carro velho do tio António — ele tinha-se oferecido para me deixar ficar uns dias na garagem dele em Loures.
Antes de sair olhei uma última vez para aquela casa onde tinha crescido, onde tinha sido feliz e infeliz tantas vezes.
O Tiago perguntou-me:
— Mamã… vamos voltar algum dia?
Não soube responder-lhe.
Agora escrevo estas palavras sentada num colchão emprestado numa garagem fria, com o Tiago a dormir ao meu lado. Sinto raiva do meu pai, mas também compreendo o desespero dele. Sinto pena da minha mãe e do Diogo, presos numa casa cheia de silêncios pesados.
Pergunto-me: quantas famílias portuguesas vivem assim, sufocadas por falta de espaço, dinheiro e compreensão? Quantos pais expulsam os filhos porque já não sabem como lidar com tanta pressão?
Será possível reconstruir uma família depois disto? Ou há feridas que nunca saram?