De Filha Querida a Intrusa: O Dia em que Meu Pai Quis Expulsar-me de Casa
— Não aguento mais esta situação, Mariana! — O grito do meu pai ecoou pela casa, atravessando as paredes finas do nosso T3 em Benfica. Eu estava na cozinha, a tentar acalmar o Tomás, o meu filho de seis anos, que chorava porque o irmão mais novo, o Evan, lhe tinha tirado o tablet. O cheiro a café requentado misturava-se com o aroma do arroz queimado no fogão.
— Pai, por favor… — tentei responder, mas ele já estava de costas para mim, a mão a tremer enquanto segurava o maço de cigarros. A minha mãe, sentada à mesa, olhava para mim com olhos cansados, como se quisesse pedir desculpa por ele, mas sem coragem para intervir.
A verdade é que nunca pensei chegar a este ponto. Sempre fui a filha querida, aquela que ele levava ao estádio da Luz aos domingos, que ensinou a andar de bicicleta no Jardim da Estrela. Mas tudo mudou quando fiquei grávida do Tomás aos 22 anos. O pai do meu filho desapareceu assim que soube da notícia. Fiquei sozinha, e os meus pais abriram-me as portas de casa — ou assim pensei.
No início, todos ajudavam. A minha mãe levantava-se de madrugada para me ajudar com as cólicas do bebé. O meu pai fazia questão de trazer brinquedos novos sempre que podia. Mas com o tempo, a paciência foi-se esgotando. O Tomás cresceu, o espaço ficou mais apertado, e os gritos começaram a ser mais frequentes do que os risos.
— Mariana, tens de perceber que isto não é vida! — disse ele naquele dia fatídico. — Eu e a tua mãe já demos tudo por ti. Agora tens de arranjar maneira de te desenrascar.
Senti um nó na garganta. Olhei para o Tomás, que me agarrava a perna com força, os olhos grandes e assustados. O Evan entrou na cozinha nesse momento, mochila às costas, pronto para sair para a escola.
— O que se passa? — perguntou ele, olhando de um para o outro.
— Nada que te diga respeito — respondeu o meu pai, seco.
O silêncio caiu pesado. A minha mãe levantou-se devagar e foi buscar um copo de água para mim. Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas engoli em seco. Não podia chorar ali. Não à frente do Tomás.
Naquela noite não consegui dormir. Fiquei a olhar para o teto do quarto minúsculo onde dormíamos eu e o meu filho. Ouvia os passos do meu pai no corredor, os sussurros abafados dos meus pais no quarto ao lado. Senti-me uma intrusa na minha própria casa.
No dia seguinte, tentei falar com a minha mãe enquanto ela preparava o pequeno-almoço.
— Mãe… achas mesmo que o pai vai pôr-me na rua?
Ela pousou a faca e olhou-me nos olhos.
— Ele está cansado, filha. Isto não é fácil para ninguém. Mas tu também tens de pensar no teu futuro… no futuro do Tomás.
— Achas que eu não penso? — respondi, quase num sussurro. — Já procurei casas para arrendar, mas com o meu ordenado de empregada de loja e uma criança pequena… ninguém me quer alugar nada. E tu sabes como estão os preços em Lisboa.
Ela suspirou fundo e abraçou-me. Senti-lhe as mãos frias nas costas.
— Eu sei… mas não podemos continuar assim para sempre.
O Tomás entrou na cozinha nesse momento, ainda de pijama.
— Mamã, hoje posso ir ao parque?
Olhei para ele e sorri, tentando esconder o desespero.
— Claro que sim, amor.
Mas por dentro sentia-me a desmoronar. Saímos para o parque naquela tarde só para fugir ao ambiente pesado lá em casa. Enquanto o Tomás brincava no escorrega com outras crianças, sentei-me num banco e liguei à minha amiga Inês.
— Inês… preciso mesmo de falar contigo.
Ela ouviu-me em silêncio enquanto eu desabafava tudo: os gritos do meu pai, o olhar vazio da minha mãe, o medo de ficar sem teto com o Tomás.
— Vem cá para casa uns dias — sugeriu ela. — O João está fora em trabalho e tenho espaço no sofá-cama.
Agradeci-lhe entre lágrimas. Mas sabia que não podia viver eternamente à custa dos amigos. O Tomás precisava de estabilidade.
Quando voltei para casa nessa noite, encontrei o meu pai sentado na sala, a ver televisão com o volume demasiado alto. Sentei-me ao lado dele e tentei falar calmamente.
— Pai… eu sei que isto não é fácil para ti nem para mim. Mas preciso de tempo para encontrar uma solução.
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas.
— Mariana… tu sabes que eu te amo. Mas eu e a tua mãe também temos direito à nossa vida. Já não somos novos… precisamos de paz.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— E eu? E o Tomás? Não temos direito a um lar?
Ele suspirou e desviou o olhar.
— Tens… mas tens de aprender a voar sozinha.
Naquela noite tomei uma decisão: ia procurar ajuda social. No dia seguinte fui ao Centro Social da freguesia e contei-lhes a minha situação. A assistente social ouviu-me com atenção e prometeu tentar encontrar uma solução temporária — talvez um quarto numa residência partilhada para mães solteiras.
Quando contei à minha mãe, ela chorou baixinho na cozinha.
— Nunca pensei ver-te sair assim…
O Evan ficou calado durante dias. Só me falou quando me viu a fazer as malas.
— Vais mesmo embora?
Assenti com a cabeça.
— Não tenho escolha.
Ele abraçou-me com força inesperada para um rapaz de 16 anos.
— Vou ter saudades tuas…
Na noite antes de sair, sentei-me na cama ao lado do Tomás enquanto ele dormia. Olhei para aquele rosto sereno e perguntei-me onde tinha falhado como filha… ou se tinha mesmo falhado. Talvez isto fosse apenas crescer — aprender a perder antes de ganhar alguma coisa nova.
No dia seguinte saí de casa com uma mala na mão e o Tomás pela outra. A minha mãe chorou à porta; o meu pai ficou na sala sem dizer palavra; o Evan acenou da janela do quarto.
Agora escrevo-vos estas palavras sentada num quarto pequeno demais para dois corações tão grandes como os nossos. Pergunto-me: quantos filhos terão passado pelo mesmo? Quantos pais terão coragem de expulsar os próprios filhos? E será isto mesmo amor… ou apenas medo disfarçado?