“Dá o apartamento ao teu irmão, afinal são família!” – A história que rasgou o meu coração e a minha família
— Mariana, tens de perceber, ele está a passar por uma fase difícil. — A voz da minha mãe ecoava pelo telemóvel, trémula, mas firme. — O teu irmão precisa desse apartamento mais do que tu.
Fiquei em silêncio, sentada no sofá da sala que tanto me custou conquistar. Olhei à volta: as paredes pintadas por mim, as plantas que cresciam devagar na varanda, os livros alinhados na estante. Cada canto tinha uma história, cada objeto era uma conquista. E agora, tudo aquilo estava em risco por causa de um pedido impossível.
— Mãe, eu trabalhei anos para conseguir este apartamento. Lembras-te das noites em que cheguei a casa às três da manhã depois do turno no hospital? Lembras-te de quando tive de pedir empréstimo ao banco porque o estágio não pagava nada? — A minha voz saiu embargada, mas tentei manter a compostura.
Do outro lado, ouvi um suspiro pesado.
— Mariana, o teu irmão não tem para onde ir. A Andreia deixou-o, ele perdeu o emprego… Não podes ser egoísta agora. Somos família.
A palavra “egoísta” ficou a martelar-me na cabeça. Sempre fui a filha responsável, aquela que nunca deu problemas, que ajudava em casa, que cuidava dos avós quando estavam doentes. O meu irmão, o Pedro, sempre foi o oposto: impulsivo, sonhador, às vezes irresponsável. Mas era o menino dos olhos da minha mãe.
Lembrei-me de quando éramos crianças e ele partiu o braço a saltar do muro do quintal. Fui eu que corri para chamar ajuda, fui eu que fiquei ao lado dele no hospital enquanto os meus pais discutiam com os médicos. Sempre fui eu a segurar os cacos.
Agora, pediam-me para abdicar do pouco que conquistei. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— E eu? — perguntei baixinho. — Ninguém pensa em mim?
O silêncio do outro lado foi ensurdecedor.
Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto, a pensar em tudo o que tinha feito para chegar ali. Lembrei-me das vezes em que recusei sair com amigos porque tinha de estudar, das férias que nunca tirei porque precisava de poupar para a entrada do apartamento. Lembrei-me do orgulho no rosto do meu pai quando lhe mostrei as chaves pela primeira vez.
No dia seguinte, o Pedro ligou-me.
— Mana… — disse ele, com aquela voz de quem já sabe que está a pedir demais. — Sei que isto é complicado. Mas juro que é só por uns meses. Só até eu me recompor.
Fechei os olhos e respirei fundo.
— Pedro, tu sabes o quanto lutei por este apartamento. Não posso simplesmente sair daqui.
— Mas tu tens trabalho! Podes arranjar outro sítio qualquer… Eu estou sem nada! — A voz dele subiu de tom, misturada com desespero e uma ponta de inveja mal disfarçada.
— Não é assim tão simples! — respondi, sentindo as lágrimas ameaçarem cair. — Isto não é só uma casa. É o meu lar!
Ele ficou calado durante uns segundos.
— A mãe disse que eras egoísta…
A frase caiu como uma pedra no meu peito. Senti-me traída por todos: pela minha mãe, pelo Pedro, até pelo meu próprio sentido de dever familiar.
Durante dias vivi num limbo. No hospital, mal conseguia concentrar-me nos doentes. Os colegas notaram o meu ar ausente; a enfermeira Rosa até me perguntou se estava tudo bem.
— Mariana, tu és sempre tão forte… Mas hoje pareces outra pessoa.
Sorri-lhe sem vontade e encolhi os ombros.
Em casa, cada objeto parecia pesar toneladas. O sofá onde adormecia exausta depois dos turnos duplos; a mesa onde escrevi a tese de mestrado; as fotografias dos meus pais jovens na parede da entrada. Tudo aquilo podia desaparecer num instante se cedesse à pressão familiar.
Uma noite, decidi ir falar com os meus pais. Sentei-me à mesa da cozinha, onde tantas vezes jantámos juntos em silêncio depois das discussões entre eles sobre dinheiro ou sobre as notas do Pedro.
— Mãe, pai… Eu preciso de falar convosco.
A minha mãe olhou-me com aquele olhar cansado de quem já viu demasiado sofrimento na vida. O meu pai mantinha-se calado, como sempre fazia quando não queria tomar partido.
— Eu não posso dar o apartamento ao Pedro — disse finalmente. — Não é justo. Eu trabalhei para aquilo. Preciso daquele espaço para mim.
A minha mãe começou logo:
— Mariana, tu sempre foste tão generosa! Não podes ajudar o teu irmão agora?
— Já ajudei tantas vezes! — explodi finalmente. — Sempre fui eu a resolver os problemas dele! E agora querem que abdique da única coisa que é verdadeiramente minha?
O meu pai levantou finalmente os olhos.
— Talvez possamos encontrar outra solução…
Mas a minha mãe não quis ouvir:
— Se não ajudas o teu irmão agora, não sei como vamos olhar para ti daqui para a frente.
Saí dali a tremer. Senti-me sozinha como nunca antes na vida.
Os dias seguintes foram um tormento. O Pedro mandava mensagens todos os dias: ora suplicava, ora ameaçava cortar relações comigo se não cedesse. A minha mãe deixou de me ligar; o meu pai limitava-se a enviar mensagens curtas: “Espero que estejas bem”.
No hospital, comecei a cometer erros parvos: troquei medicação de um doente, esqueci-me de preencher relatórios importantes. O chefe chamou-me ao gabinete:
— Mariana, tu és das melhores médicas deste serviço. Mas se continuares assim vais acabar por prejudicar-te e aos outros.
Chorei no gabinete dele como uma criança perdida.
Nessa noite sentei-me na varanda e olhei Lisboa iluminada lá em baixo. Pensei em tudo o que tinha sacrificado para chegar ali: amizades perdidas, amores deixados para trás porque “não era altura”, sonhos adiados à espera de um futuro melhor.
E agora? Agora pediam-me para abdicar da única coisa que era só minha em nome de uma família que só me procurava quando precisava de mim.
Recebi uma mensagem da minha avó:
— Minha querida Mariana, às vezes temos de pensar em nós primeiro. Não deixes que te roubem aquilo que conquistaste com tanto esforço.
As palavras dela foram como um bálsamo nas feridas abertas pelo resto da família.
No dia seguinte tomei uma decisão: não ia ceder. Enviei uma mensagem ao Pedro:
— Desculpa, mas não posso dar-te o apartamento. Espero que encontres outra solução e que um dia percebas porque tomei esta decisão.
Ele respondeu com insultos e ameaças de nunca mais me falar. A minha mãe ligou-me aos gritos; desliguei-lhe o telefone na cara pela primeira vez na vida.
Durante semanas vivi num silêncio pesado. No hospital recuperei o foco; os colegas começaram a notar que estava mais calma. Em casa aprendi a gostar do silêncio e da solidão escolhida.
Um dia recebi uma carta do Pedro:
“Desculpa pelas coisas horríveis que te disse. Sei que não tens culpa dos meus problemas. Espero que um dia possamos voltar a ser irmãos como antes.”
Chorei ao ler aquelas palavras. Percebi que às vezes amar alguém é também saber dizer não.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes sacrificamos a nossa felicidade em nome de uma família que nem sempre nos compreende? Será egoísmo escolher-nos a nós próprios? E vocês? Já passaram por algo assim?