Crianças à Mesa: O Jantar Esquecido

— Mãe, o jantar está quase pronto? — perguntou a Leonor, a mais nova, com aquela voz fina que me atravessa como uma faca. Olhei para o relógio pendurado na parede da cozinha, os ponteiros pareciam zombar de mim. Eram quase oito horas e a panela estava vazia. O cheiro do arroz queimado ainda pairava no ar, lembrando-me do meu fracasso.

Respirei fundo, tentando não deixar transparecer o desespero. O António, o mais velho, já tinha percebido que algo não estava bem. Sentou-se à mesa com os braços cruzados, olhando para mim com aqueles olhos castanhos tão parecidos com os do pai. O pai…

— Mãe, o pai vai chegar hoje? — perguntou ele, baixinho.

Senti um aperto no peito. O João saiu de casa há três semanas, depois de uma discussão feia sobre dinheiro. Disse que ia procurar trabalho em Lisboa, mas desde então só recebi uma mensagem curta: “Estou bem. Não te preocupes.” Como não me preocupar? Como explicar aos meus filhos que o pai pode não voltar?

A Inês, do meio, tentava distrair a Leonor com bonecas improvisadas de trapos. O estômago delas roncava mais alto do que as vozes na sala. Fui até à despensa: meia cebola, um pacote de massa quase vazio, uma lata de atum amassada. Fechei os olhos e rezei baixinho para Nossa Senhora me dar forças.

— Mãe, posso ajudar? — perguntou Inês, sempre tão doce.

— Vai pôr a mesa, filha — respondi, forçando um sorriso.

Enquanto ela alinhava os pratos lascados e os copos desirmanados, tentei inventar um jantar digno. Fritei a cebola num fio de azeite (o último), juntei a massa e o atum. Mexi devagar, como se pudesse transformar aquilo numa refeição farta só com esperança.

O António levantou-se de repente:

— Não quero comer isso outra vez! Já chega! — gritou, batendo com o punho na mesa.

A Inês começou a chorar. A Leonor agarrou-se à minha saia.

— António! — tentei manter a calma — Não temos outra coisa…

Ele saiu disparado para o quarto. Fiquei ali parada, sentindo-me pequena, inútil. As lágrimas ameaçavam cair, mas engoli-as como tantas vezes antes.

Sentei-me no banco da cozinha e olhei para as minhas mãos: calejadas de limpar casas alheias, de lavar escadas e esfregar chão. Trabalhei tanto hoje que mal sentia os pés. E para quê? Para isto? Para ver os meus filhos revoltados e famintos?

O telefone tocou. O coração disparou: seria o João? Mas era a minha mãe.

— Maria, está tudo bem?

Quis mentir. Dizer que sim. Mas a voz saiu trémula:

— Não sei o que fazer, mãe… Eles têm fome e eu não tenho nada para lhes dar.

Do outro lado ouvi um suspiro pesado.

— Vem cá amanhã buscar uns ovos e batatas. Não te envergonhes, filha. Todos precisamos de ajuda às vezes.

Agradeci em silêncio. Desliguei e voltei à sala.

O António estava sentado na cama, de costas para mim.

— Filho…

Ele não respondeu.

— Eu sei que não é fácil. Mas estamos juntos nisto. O pai…

— O pai fugiu porque não aguenta ver-nos assim! — gritou ele, com raiva e tristeza misturadas.

Sentei-me ao lado dele e abracei-o. Senti o corpo dele tremer.

— O pai está a tentar arranjar trabalho para nos ajudar. Eu também estou a lutar todos os dias por vocês. Mas preciso que me ajudes…

Ele chorou baixinho no meu ombro. Fiquei ali com ele até se acalmar.

Voltámos à cozinha. A Inês e a Leonor já tinham adormecido no sofá, exaustas de tanto esperar pelo jantar que nunca chegava.

Preparei dois pratos pequenos com a massa e o atum. Sentei-me com o António à mesa.

— Desculpa ter gritado contigo — murmurou ele.

— Eu também te peço desculpa por não conseguir dar-vos mais…

Comemos em silêncio. Cada garfada era pesada como chumbo.

Quando terminei de arrumar a cozinha, sentei-me sozinha na varanda. Olhei para as luzes da aldeia ao longe e pensei em tudo o que tinha perdido: o marido, a dignidade, a esperança.

No dia seguinte acordei cedo e fui à casa da minha mãe buscar comida. Ela abraçou-me forte e disse:

— Vais conseguir sair desta, Maria. És forte como o teu pai era.

Mas eu sentia-me tão fraca…

Voltei para casa com ovos e batatas. Fiz um jantar simples mas quente para os meus filhos. Vi-os sorrir pela primeira vez em dias.

À noite, depois de os deitar, sentei-me na cama e chorei tudo o que tinha guardado dentro de mim.

Será que algum dia vou conseguir dar-lhes uma vida melhor? Ou estamos condenados a esta luta sem fim?

E vocês? Já sentiram este peso no peito? Como encontram forças quando tudo parece perdido?