Coração nas Mãos: A História de Uma Mulher Portuguesa Entre o Sacrifício e o Amor
— Tu estás louca, Mariana? Vais mesmo fazer isso por um estranho? — A voz da minha mãe ecoava pelo corredor estreito do nosso apartamento em Benfica, carregada de incredulidade e medo. O meu pai, sentado à mesa da cozinha, olhava para as mãos, incapaz de me encarar. O silêncio pesado entre nós era cortado apenas pelo som do relógio antigo na parede.
Eu sentia o coração a bater tão forte que quase podia ouvi-lo. Tinha acabado de lhes contar que ia ser dadora de rim para um menino de oito anos, o Tomás, que nunca tinha visto antes daquela manhã no Hospital de Santa Maria. Conheci-o por acaso, quando fui visitar uma amiga internada. Vi-o no corredor, magro, com olhos enormes e tristes, agarrado à mão da mãe. Não consegui ignorar aquele olhar. Fiquei a saber que precisava urgentemente de um transplante e que a lista de espera era longa demais para ele.
Durante dias, não consegui dormir. A imagem do Tomás perseguia-me nos sonhos e nos pensamentos. Falei com médicos, procurei informações, fiz exames. Quando soube que era compatível, senti uma alegria estranha, misturada com medo. E agora ali estava eu, a enfrentar a minha família.
— Mariana, pensa bem — insistiu o meu pai, finalmente levantando os olhos. — E se te acontecer alguma coisa? E se precisares do rim um dia? E se… — a voz dele falhou.
— Pai, eu já pensei em tudo — respondi, tentando controlar as lágrimas. — Mas não consigo viver sabendo que podia salvar uma vida e não fiz nada.
A minha irmã mais nova, a Sofia, entrou na sala nesse momento. Tinha ouvido tudo atrás da porta. — E eu? E se eu precisar de ti? — perguntou baixinho, com os olhos cheios de lágrimas.
Aquelas palavras ficaram a ecoar dentro de mim durante semanas. O medo de magoar quem amo misturava-se com a urgência de ajudar alguém que nem conhecia. No hospital, a mãe do Tomás chorou quando lhe contei a minha decisão. Abraçou-me como se eu fosse família dela.
Os dias antes da operação foram um turbilhão. A minha mãe deixou de falar comigo durante uma semana inteira. O meu namorado, o Rui, ameaçou acabar tudo se eu avançasse com aquilo. — Não quero ver-te sofrer — disse-me ele numa noite chuvosa, à porta do prédio. — Não quero perder-te por causa de uma decisão impulsiva.
— Isto não é impulsivo — respondi-lhe, com a voz trémula. — É o que sinto que devo fazer.
No trabalho, os colegas olhavam-me como se fosse uma heroína ou uma louca. A chefe chamou-me ao gabinete e perguntou se tinha mesmo pensado nas consequências. — Vais precisar de tempo para recuperar. E se não voltares igual? — questionou ela.
Na véspera da cirurgia, sentei-me sozinha no meu quarto escuro. Olhei para as fotografias da infância coladas na parede: eu e a Sofia na praia da Nazaré, os meus pais sorridentes num piquenique no Parque Eduardo VII. Senti uma saudade imensa do tempo em que tudo era simples e seguro.
Na manhã da operação, o hospital parecia mais frio do que nunca. O Tomás estava numa cama ao lado da minha na enfermaria pré-operatória. Sorriu-me timidamente quando entrei. A mãe dele apertou-me a mão com força.
— Obrigada — sussurrou ela, com lágrimas nos olhos. — Não sei como te agradecer.
— Só quero vê-lo bem — respondi.
Acordei da anestesia com uma dor surda no corpo e uma sensação estranha de vazio. A primeira coisa que perguntei foi pelo Tomás. Disseram-me que estava bem, que o rim tinha começado a funcionar logo nas primeiras horas.
Os dias seguintes foram difíceis. O Rui não apareceu no hospital. A minha mãe veio visitar-me em silêncio, sentou-se ao meu lado e segurou-me na mão sem dizer palavra. A Sofia trouxe-me flores e ficou a olhar para mim como se tivesse medo de me perder ali mesmo.
Quando finalmente voltei para casa, tudo parecia diferente. O Rui acabou por me ligar semanas depois, mas já não era o mesmo entre nós. A minha mãe demorou meses até conseguir falar sobre o assunto sem chorar. O meu pai abraçou-me pela primeira vez em anos quando voltei do hospital.
Recebi uma carta da mãe do Tomás pouco depois do Natal. Contava-me como ele estava a recuperar bem, como já conseguia brincar no jardim e ir à escola outra vez. Guardei aquela carta como um tesouro.
Mas nem tudo foi fácil depois disso. Fiquei meses sem conseguir trabalhar normalmente. Tive crises de ansiedade e noites em claro a pensar se tinha feito bem ou mal. Às vezes sentia raiva por ter perdido o Rui e por ter magoado tanto a minha família.
Um dia encontrei a Sofia sentada na varanda, a olhar para Lisboa ao entardecer.
— Ainda estás zangada comigo? — perguntei-lhe.
Ela abanou a cabeça devagar.
— Não estou zangada… Só tenho medo de te perder outra vez.
Sentei-me ao lado dela e ficámos ali em silêncio durante muito tempo.
Hoje olho para trás e vejo tudo o que perdi e tudo o que ganhei. Ainda sinto falta do Rui às vezes; ainda me dói ver a tristeza nos olhos da minha mãe quando fala do assunto. Mas também sei que salvei uma vida e que isso ninguém me pode tirar.
Pergunto-me muitas vezes: será que valeu a pena sacrificar tanto por alguém que não conhecia? Será que o amor ao próximo justifica magoar quem mais amamos? E vocês, o que fariam no meu lugar?