“Compra tu próprio pão e cozinha para ti – Chega!” – A história de uma mulher portuguesa que disse basta ao marido que nunca quis crescer

— Compra tu próprio pão e cozinha para ti, Miguel! Chega! — gritei, a voz a tremer, surpreendendo-me até a mim própria. O eco das minhas palavras ficou suspenso na cozinha, entre o cheiro a sopa fria e o tilintar dos talheres que ele acabara de pousar com força na mesa.

Miguel olhou para mim, olhos arregalados, como se eu tivesse acabado de lhe bater. — O que é que disseste, Ana? — perguntou, a voz baixa, quase ameaçadora, como fazia sempre que sentia o controlo a escapar-lhe.

Senti o coração a bater-me no peito, tão forte que temi que ele ouvisse. Mas não recuei. — Estou farta, Miguel. Farta de ser eu a tratar de tudo. Da casa, das compras, das refeições, da roupa, dos miúdos… Até do teu pequeno-almoço! — A minha voz saiu mais alta do que esperava, e percebi, naquele instante, que não havia volta atrás.

Durante anos, fui aquela mulher portuguesa típica, ensinada desde pequena pela minha mãe, a Dona Lurdes, que a mulher é o pilar da casa. “O homem trabalha, a mulher cuida”, dizia ela, enquanto me mostrava como passar camisas e fazer arroz soltinho. Casei-me com Miguel aos vinte e três, cheia de sonhos, e logo vieram os filhos: o João, a Mariana, e depois o Tomás. A rotina instalou-se como uma névoa espessa, e eu fui desaparecendo dentro dela.

Miguel nunca foi mau homem, mas também nunca cresceu. Vinha do trabalho, largava as botas sujas à porta, sentava-se no sofá e esperava que tudo lhe caísse no colo. Se eu demorava, resmungava. Se esquecia alguma coisa, fazia-se de vítima. E eu, para evitar discussões, engolia tudo. Engolia as mágoas, as frustrações, os sonhos adiados. Engolia até já não saber quem era.

Naquela noite, tudo mudou. Não foi um acontecimento extraordinário, nem uma tragédia. Foi só o cansaço, acumulado em anos de silêncios e de tarefas invisíveis. O João, com dezasseis anos, estava fechado no quarto a jogar computador. A Mariana, de catorze, ouvia música nos auscultadores, alheia ao mundo. O Tomás, o mais novo, dormia no sofá, ainda com os ténis calçados. E eu, sozinha na cozinha, a preparar o jantar para todos, enquanto Miguel via futebol.

Quando finalmente me sentei à mesa, já todos tinham comido. Só restavam pratos sujos e migalhas. Miguel, sem olhar para mim, perguntou:

— Não há pão?

Foi aí que rebentei. Não era só o pão. Era tudo. Era a solidão de quem faz tudo por todos e nunca recebe um obrigado. Era o peso de uma vida inteira a cuidar dos outros, esquecendo-me de mim.

— Compra tu próprio pão e cozinha para ti! — repeti, agora mais calma, mas com uma firmeza que nunca tinha sentido.

Miguel levantou-se, furioso. — Estás maluca? O que é que se passa contigo?

— O que se passa é que estou cansada, Miguel. Cansada de ser tua mãe, tua empregada, tua cozinheira. Quero ser tua mulher. Quero ser eu.

Ele bufou, pegou nas chaves do carro e saiu, batendo a porta com força. Fiquei ali, sozinha, a tremer, mas estranhamente aliviada. Pela primeira vez em muitos anos, senti que tinha feito algo por mim.

Na manhã seguinte, acordei com os olhos inchados de tanto chorar. A casa estava silenciosa. Os miúdos tinham saído para a escola sem se despedirem. Miguel não voltou a dormir em casa. Durante dias, não falou comigo. A minha mãe ligou, preocupada:

— Ana, o que é que se passa? O Miguel ligou-me, disse que estás diferente…

— Estou cansada, mãe. Só isso.

— Tens de ter paciência, filha. Os homens são assim. Sempre foram. O teu pai também era…

— Pois, mãe. Mas eu não quero ser como tu. Não quero passar a vida a engolir tudo.

Ela suspirou, resignada. — Faz como entenderes, mas pensa nos teus filhos.

Pensei neles. No João, sempre fechado no quarto, sem saber falar dos sentimentos. Na Mariana, a aprender comigo que a mulher tem de se calar e aguentar. No Tomás, a crescer a achar que a mãe serve para tudo. Não queria isso para eles. Não queria isso para mim.

Miguel voltou três dias depois. Entrou sem dizer nada, pousou as chaves e sentou-se à mesa. Eu estava a ler, coisa rara. Olhou para mim, desconfiado.

— Não há jantar?

Fechei o livro devagar. — Não. Hoje não cozinhei. Se quiseres, há sopa no frigorífico.

Ele ficou a olhar para mim, como se não me reconhecesse. — O que é que te deu?

— Dei-me a mim própria, Miguel. Dei-me tempo. Dei-me respeito. Dei-me valor. E quero que tu também me dês.

Ele não respondeu. Levantou-se e foi buscar a sopa. Pela primeira vez, lavou a taça quando acabou. Pequenas vitórias, pensei.

Os dias seguintes foram estranhos. Miguel tentava voltar à rotina, mas eu já não era a mesma. Comecei a sair para caminhar sozinha ao fim da tarde. Voltei a pintar, coisa que adorava antes de casar. Inscrevi-me num curso de costura na junta de freguesia. Os miúdos estranharam. O João perguntou:

— Mãe, estás chateada com o pai?

— Não, filho. Só estou cansada de fazer tudo sozinha. Achas justo?

Ele encolheu os ombros. — Não sei. Nunca pensei nisso.

— Pois, está na altura de pensares. Aqui em casa, todos temos de ajudar.

A Mariana começou a pôr a mesa sem eu pedir. O Tomás ajudava a arrumar os brinquedos. Miguel, a custo, começou a fazer compras. No início, fazia tudo de má vontade, mas aos poucos foi percebendo que eu não ia voltar atrás.

Houve discussões, claro. Muitas. Miguel dizia que eu estava a destruir a família, que era egoísta. A minha mãe chorava ao telefone, a dizer que eu ia acabar sozinha. Os vizinhos cochichavam. Mas eu mantive-me firme.

Uma noite, depois de uma discussão mais acesa, Miguel sentou-se ao meu lado na cama. — Ana, eu não sei viver assim. Sempre foi tudo feito por ti. Eu não sei fazer diferente.

Olhei para ele, cansada mas serena. — Então aprende, Miguel. Se me amas, aprende. Porque eu não volto atrás.

Ele chorou. Pela primeira vez em vinte anos de casamento, vi o meu marido chorar. E percebi que, apesar de tudo, ainda havia amor. Só que o amor não basta quando não há respeito.

Os meses passaram. A nossa vida mudou. Não foi fácil. Ainda hoje há dias em que me apetece desistir. Mas já não sou a mesma mulher. Aprendi a dizer não. Aprendi a pedir ajuda. Aprendi que não tenho de ser perfeita, nem de carregar o mundo às costas.

Hoje, quando olho para trás, pergunto-me porque esperei tanto tempo. Porque deixei que o medo me calasse durante tantos anos. Porque aceitei tão pouco, quando merecia tanto mais.

E vocês, quantas vezes já engoliram as palavras por medo de magoar alguém? Quantas vezes se esqueceram de si próprios para agradar aos outros? Será que vale mesmo a pena viver assim?