Como um simples creme de rosto desfez duas famílias – A minha história de confiança, ciúme e perdão

— Não acredito, Mariana! Como é que foste capaz de esconder isto de mim? — a voz do Miguel ecoava pela cozinha, carregada de mágoa e incredulidade. Eu estava ali, parada, com as mãos trémulas e o coração aos saltos, olhando para aquele pequeno frasco de creme de rosto pousado na bancada. Nunca pensei que um objeto tão banal pudesse desencadear tamanha tempestade.

Tudo começou numa tarde de domingo, quando a minha mãe, Dona Teresa, veio cá a casa para o habitual almoço em família. O ambiente estava tenso desde o início — o meu pai, António, andava distante, e a minha irmã mais nova, Sofia, não largava o telemóvel. Eu tentava manter as aparências, sorrindo e servindo o arroz de pato, mas sentia o peso de algo prestes a rebentar.

Depois do almoço, enquanto arrumava a loiça, reparei que a minha sogra, Dona Lurdes, tinha deixado um saco no hall de entrada. Curiosa, abri-o e encontrei um creme de rosto caro, daqueles que só se vendem na farmácia da Dona Graça. O bilhete dizia: “Para a mulher mais especial da família. Com carinho, Lurdes.” Senti um aperto no peito. O presente era para mim? Ou seria para a minha mãe? Ou talvez para a Sofia?

Decidi guardar o creme na gaveta do meu quarto até perceber o que fazer. Não queria criar confusões — já bastavam as picardias entre a minha mãe e a sogra, sempre a competir por quem fazia o melhor bacalhau ou quem dava os melhores conselhos sobre educação dos netos.

Naquela noite, Miguel entrou no quarto e viu-me a segurar o frasco. — O que é isso? — perguntou desconfiado. Expliquei-lhe como tinha encontrado o presente e mostrei-lhe o bilhete. Ele ficou calado durante uns segundos longos demais.

— Achas normal a minha mãe dar-te um presente assim? E esse bilhete? — insistiu ele, com as sobrancelhas franzidas.

— Não sei, Miguel. Talvez seja só gentileza dela…

— Gentileza? A minha mãe nunca foi assim contigo. E porque é que escondeste isto?

Senti-me encurralada. Não queria admitir que tinha medo de alimentar ainda mais a rivalidade entre as mães. Mas Miguel não me deu tempo para explicar.

No dia seguinte, Dona Lurdes ligou-me cedo. — Mariana, recebeste o meu presente? Espero que gostes! — disse ela com uma voz doce, mas carregada de segundas intenções.

— Recebi sim, obrigada… — respondi, tentando soar natural.

— Olha que foi caro! Só para ti. Não deixes ninguém meter as mãos nisso! — riu-se ela.

Desliguei com um nó na garganta. A minha mãe apareceu logo depois para tomar café comigo. Reparei que olhava insistentemente para a minha pele.

— Estás diferente hoje… Estás a usar algum creme novo? — perguntou ela, meio desconfiada.

— Não… Nada de especial — menti.

A culpa começou a corroer-me por dentro. Sentia-me dividida entre agradar à sogra e não magoar a minha mãe. E Miguel cada vez mais distante.

Na sexta-feira seguinte, durante um jantar em casa dos pais do Miguel, Dona Lurdes não resistiu:

— Então Mariana, já estás a usar o creme que te dei? Olha que faz milagres!

A minha mãe ficou gelada. Olhou para mim com olhos de quem acabou de ser traída.

— Que creme é esse? — perguntou ela num tom cortante.

O silêncio caiu sobre a mesa como uma nuvem negra. Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos.

— É só um creme… — murmurei.

— Só um creme? Então porque é que não disseste nada? — insistiu ela.

O meu pai tentou apaziguar: — Deixem-se disso, é só um presente…

Mas Dona Lurdes não largava o osso:

— Eu só quis mimar a Mariana. Não sabia que ia causar tanto drama!

A partir desse dia, tudo mudou. A minha mãe começou a evitar vir cá a casa. A Sofia passou a mandar bocas sobre “preferências” e “filhas favoritas”. Miguel acusava-me de esconder coisas dele e eu sentia-me cada vez mais sozinha.

Uma noite, depois de uma discussão feia com Miguel sobre confiança e segredos, fugi para casa dos meus pais. A minha mãe recebeu-me com frieza:

— Agora lembras-te que tens mãe?

Chorei como há muito não chorava. Senti-me uma criança outra vez, perdida entre os adultos e os seus jogos de poder.

Os dias passaram arrastados. O ambiente em casa era insuportável. Miguel dormia no sofá e eu evitava olhar-lhe nos olhos. A Sofia afastou-se ainda mais e até o meu pai parecia cansado de tanta tensão.

Foi então que descobri que Dona Lurdes tinha contado à vizinhança toda que eu era “ingrata” e “mal-agradecida”. A Dona Graça comentou comigo na farmácia:

— Ouvi dizer que andas metida em confusões por causa de um creme…

Senti vergonha. Como é possível que algo tão pequeno tenha criado este caos?

Decidi enfrentar tudo de uma vez por todas. Convidei todos para jantar cá em casa: os meus pais, os sogros, a Sofia e até o meu irmão Pedro, que vive em Braga e raramente aparece.

Preparei tudo ao pormenor: mesa posta com flores frescas, comida caseira e até uma sobremesa especial da receita da minha avó. Quando todos estavam sentados à mesa, respirei fundo e comecei:

— Sei que todos estamos magoados. Sei que errei ao esconder o presente da Dona Lurdes e ao mentir à mãe. Mas não posso continuar a viver nesta guerra fria por causa de um creme! Somos família…

A minha mãe olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas:

— Mariana… Eu só queria sentir-me importante para ti.

Miguel suspirou:

— Eu devia ter confiado mais em ti.

Dona Lurdes encolheu os ombros:

— Talvez tenha exagerado…

A Sofia levantou-se da mesa:

— Estou farta destas guerras! Quero ter uma irmã como antes!

As lágrimas correram-me pelo rosto enquanto todos falavam ao mesmo tempo: desculpas misturadas com acusações antigas, mágoas guardadas há anos vieram ao de cima naquela noite.

No fim do jantar, sentámo-nos todos na sala em silêncio. O meu pai serviu um cálice de vinho do Porto e disse:

— Às vezes precisamos de uma tempestade para limpar o ar.

A reconciliação não foi imediata nem perfeita. Ainda hoje há feridas abertas e conversas difíceis por ter. Mas aprendi que as relações são frágeis como vidro — basta um gesto mal interpretado para tudo se partir.

Hoje olho para trás e pergunto-me: como é possível que um simples creme tenha exposto tantas inseguranças e ressentimentos? Será que alguma vez conseguimos perdoar verdadeiramente quem amamos? E vocês… já passaram por algo assim nas vossas famílias?