Como Ensinei à Minha Prima a Não Aparecer Sem Avisar nos Feriados

— Outra vez, Sílvia? — pensei, enquanto ouvia o toque insistente à campainha. O relógio marcava 18h30 da véspera de Natal e eu, Zuzana, estava finalmente a pôr os pés em cima do sofá, com um copo de vinho tinto na mão e o cheiro do bacalhau com natas a invadir a casa. O meu coração disparou. Sabia exatamente quem era. Só podia ser ela.

A campainha tocou de novo, desta vez acompanhada por risos e vozes infantis. O meu marido, Rui, olhou-me com aquele olhar de quem pede desculpa por algo que não fez. — Queres que eu atenda? — murmurou.

— Não, deixa estar. — Levantei-me devagar, sentindo o peso de todos os Natais anteriores em cima dos ombros. Abri a porta e lá estava Sílvia, com o marido, os dois filhos e até a sogra, todos carregados de sacos e embrulhos.

— Zuzana! Que bom ver-te! — exclamou ela, já a entrar sem esperar resposta. Os miúdos correram para a sala, atirando os casacos para cima das cadeiras. O marido dela foi logo à cozinha ver o que havia para petiscar. A sogra sentou-se no meu sofá como se fosse dela.

— Olá, Sílvia… — forcei um sorriso. — Não sabia que vinhas.

— Ah, sabes como é! Natal é em família! — respondeu ela, piscando-me o olho como se partilhássemos um segredo cúmplice. Mas não havia segredo nenhum. Havia apenas cansaço e frustração.

Durante anos fui aquela que nunca dizia nada. A minha mãe sempre me ensinou: “Zuzana, não faças ondas.” Mas naquele momento, enquanto via a minha casa ser invadida mais uma vez, algo dentro de mim quebrou.

A noite desenrolou-se como sempre: Sílvia a comandar a conversa, os miúdos a correrem e gritarem, o marido dela a criticar o vinho que eu tinha escolhido — “Em casa da minha mãe é sempre melhor” — e eu a servir pratos atrás de pratos, enquanto o Rui tentava ajudar-me com olhares cúmplices e sorrisos tímidos.

Quando finalmente todos se sentaram à mesa, Sílvia começou:

— Sabes, Zuzana, devias mesmo pensar em ter filhos. Olha para esta casa tão silenciosa… Falta-lhe vida!

Senti o sangue ferver-me nas veias. Já não era só o incómodo da visita inesperada; era o julgamento constante, as comparações, as piadas veladas sobre as minhas escolhas.

— Sílvia, por favor… — comecei, mas ela interrompeu-me:

— Não leves a mal! É só uma opinião. Família é isto: barulho, confusão… — E brindou com o copo de vinho.

O Rui apertou-me a mão debaixo da mesa. Eu respirei fundo e decidi: era agora ou nunca.

— Sílvia, preciso de falar contigo — disse, levantando-me. Levei-a até à varanda, longe dos olhares curiosos.

Ela olhou-me com ar divertido: — O que foi agora? Vais dar-me um sermão?

— Não é um sermão — respondi, tentando controlar a voz trémula. — Só queria pedir-te… para não vires cá sem avisar. Eu gosto muito de ti e da tua família, mas preciso de saber quando vêm. Preciso de me preparar.

Ela riu-se: — Ai Zuzana, és tão formal! Isto é família! Não há cerimónias!

— Mas há limites — disse eu, sentindo finalmente o peso das palavras sair-me do peito. — E eu preciso dos meus.

O sorriso dela esmoreceu por um instante.

— Estás chateada comigo?

— Não estou chateada… Só estou cansada. Todos os anos é igual. Eu preparo tudo para mim e para o Rui… E depois aparecem vocês todos sem avisar. Eu fico nervosa, sinto que não sou suficiente… E depois ainda ouço piadas sobre o vinho ou sobre não ter filhos…

Ela ficou calada durante uns segundos que pareceram horas.

— Nunca pensei que te sentisses assim…

— Pois… Porque nunca disseste nada — respondeu ela num tom mais baixo.

— Porque sempre achei que era o melhor para não magoar ninguém.

Ela suspirou e olhou para as luzes da cidade lá fora.

— Sabes… Eu venho cá porque sinto falta da nossa infância. Quando éramos miúdas e passávamos os Natais juntas… Em casa dos avós…

Senti um nó na garganta. Também sentia falta disso. Mas agora éramos adultas, com vidas diferentes.

— Eu também sinto falta disso — admiti. — Mas agora preciso de espaço para criar as minhas próprias tradições.

Ela assentiu devagar.

Voltámos para dentro em silêncio. O resto da noite foi estranho; pela primeira vez em muitos anos, Sílvia estava calada. O marido dela percebeu o ambiente tenso e tentou animar as coisas com piadas forçadas. Os miúdos continuaram a brincar como se nada fosse.

Quando finalmente saíram — já depois da meia-noite — Sílvia abraçou-me mais forte do que nunca.

— Desculpa se te magoei — murmurou ao meu ouvido.

Fechei a porta atrás deles e desabei no sofá. O Rui sentou-se ao meu lado e puxou-me para junto dele.

— Fizeste bem — disse ele baixinho. — Finalmente pensaste em ti.

Na manhã seguinte acordei com uma mensagem da minha mãe: “Zuzana, ouvi dizer que houve confusão ontem à noite… Era preciso tanto drama?”

Suspirei fundo antes de responder: “Mãe, às vezes é preciso dizer basta para podermos ser felizes.”

Os dias seguintes foram estranhos: telefonemas curtos com Sílvia, silêncios constrangedores nos grupos de família do WhatsApp. A minha tia mandou-me uma mensagem passivo-agressiva: “Espero que estejas contente por teres estragado o Natal à tua prima.” Senti-me culpada durante dias. Questionei-me mil vezes se tinha feito bem.

Mas depois comecei a reparar numa coisa: pela primeira vez em muitos anos sentia-me leve. A minha casa era mesmo minha; as minhas escolhas eram respeitadas; o Rui estava orgulhoso de mim.

Na Páscoa seguinte, Sílvia ligou-me:

— Olá Zuzana… Este ano vamos passar em casa dos meus sogros. Mas gostava de te ver um dia destes para um café só nós as duas… Pode ser?

Sorri ao telefone.

— Pode ser sim, Sílvia.

Desliguei e fiquei a olhar pela janela da cozinha, sentindo uma paz nova dentro de mim.

Às vezes penso: quantas vezes deixamos que os outros passem por cima dos nossos limites só porque temos medo do conflito? Vale mesmo a pena sacrificar a nossa paz só para agradar aos outros? E vocês? Já tiveram de impor limites na vossa família?