Como a Fé Me Salvou Durante a Guerra pelo Herança: Uma História Real Portuguesa
— Não me venhas dizer que o pai queria que ficasse tudo para ti, Mariana! — gritou a minha irmã, Joana, com os olhos vermelhos de raiva e mágoa. O eco da sua voz ainda ressoava na sala, onde o cheiro a café frio e flores murchas se misturava com o peso do luto. Eu, sentada na poltrona onde o meu pai costumava ler o jornal, sentia o coração apertado, como se cada palavra dela fosse uma facada.
Nunca pensei que, depois de perder o meu pai, fosse perder também a minha família. Crescemos juntas, eu e a Joana, partilhando segredos, risos, até as roupas. Mas agora, com o testamento em cima da mesa, éramos duas estranhas, cada uma agarrada à sua dor e ao seu orgulho.
A morte do meu pai foi súbita. Um enfarte, disseram os médicos. Lembro-me de receber a chamada da minha mãe, a voz dela tremia: “Mariana, o pai… o pai foi-se.” O mundo parou. Fui para casa deles a correr, sem saber o que fazer. A casa estava cheia de vizinhos, primos, tios — todos a chorar, todos a perguntar o que seria de nós agora.
Os dias seguintes foram um nevoeiro. O funeral, as visitas, as palavras de consolo que soavam vazias. Só quando o advogado da família nos chamou para ler o testamento é que percebi que o pior ainda estava para vir.
O meu pai deixou tudo dividido: a casa em Cascais, o apartamento em Lisboa, as poupanças, até o velho Renault Clio. Mas havia uma cláusula: a casa da aldeia, onde passámos todos os verões da infância, ficava para mim. “Para a Mariana, que sempre cuidou de mim nos últimos anos”, escreveu ele. Joana ficou em silêncio, mas vi nos olhos dela o início de uma tempestade.
— Sempre foste a preferida — atirou ela, dias depois, quando já só restávamos nós duas na cozinha. — Achas justo? Eu também sou filha! — A voz dela tremia, e eu senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— Não fui eu que escrevi o testamento, Joana. Eu só… — tentei explicar, mas ela já não me ouvia. Saiu, batendo a porta com força. O som ecoou pela casa vazia, como um aviso de que nada voltaria a ser como antes.
As semanas passaram e o conflito só piorou. A minha mãe tentava apaziguar, mas estava demasiado frágil. Os tios começaram a tomar partido. Os primos deixaram de falar comigo. Senti-me sozinha, como nunca antes.
Foi nessa altura que comecei a ir à igreja todos os dias. Não era praticante fervorosa, mas precisava de um lugar onde pudesse chorar sem ser julgada. Sentava-me no último banco, olhava para o altar e perguntava a Deus: “Porquê, Senhor? Porque é que a minha família se está a desfazer?”
Uma tarde, o padre António sentou-se ao meu lado. — Mariana, às vezes Deus não nos tira as tempestades, mas ensina-nos a dançar à chuva — disse ele, com um sorriso triste. Chorei como uma criança. Senti uma paz estranha, como se alguém me abraçasse por dentro.
Comecei a rezar por mim, pela Joana, pela minha mãe. Pedi força para não responder à raiva com raiva. Pedi coragem para perdoar, mesmo sem ser perdoada. E, aos poucos, fui encontrando serenidade.
Mas a guerra pelo testamento continuava. Joana ameaçou contestar a decisão em tribunal. Os advogados trocavam cartas, os vizinhos cochichavam. Eu sentia-me cada vez mais isolada. Uma noite, sozinha na casa da aldeia, abri uma gaveta do velho aparador e encontrei uma carta do meu pai. A letra dele, trémula, dizia: “Mariana, sei que isto vai ser difícil. Mas confio em ti para manteres a família unida. Não deixes que o dinheiro vos separe.”
Li aquela carta dezenas de vezes. Chorei, gritei, rezei. E percebi que tinha de fazer alguma coisa. No domingo seguinte, depois da missa, fui ter com a Joana. Ela estava sentada no jardim da nossa infância, com os olhos inchados de tanto chorar.
— Joana, eu não quero esta casa se isso significar perder-te. — A minha voz saiu baixa, mas firme. — O pai queria que ficássemos juntas. Podemos vender a casa, dividir tudo. Ou podes ficar tu com ela. Só não quero continuar assim.
Ela olhou para mim, surpresa. — Achas que é só isso? Não é pela casa, Mariana. É porque senti que o pai gostava mais de ti. Sempre foste a filha perfeita…
Abracei-a. Pela primeira vez em meses, senti que a minha irmã estava ali, de verdade. Chorámos juntas, como quando éramos pequenas e tínhamos medo do escuro.
A partir desse dia, as coisas começaram a mudar. Não foi fácil. Ainda houve discussões, mágoas, silêncios. Mas, com o tempo, fomos reconstruindo a confiança. A fé ajudou-me a perdoar, a pedir perdão, a aceitar que a família é feita de imperfeições.
Hoje, a casa da aldeia é nossa, das duas. Vamos lá todos os verões, com os nossos filhos, os nossos maridos, a nossa mãe. Às vezes, sento-me no jardim e penso no meu pai. Sinto que ele está ali, a sorrir, orgulhoso de nós.
A fé não me devolveu o que perdi, mas deu-me força para não perder ainda mais. E pergunto-me: quantas famílias se destroem por causa de coisas materiais? Será que vale a pena sacrificar o amor por uma casa, por dinheiro? O que é que vocês fariam no meu lugar?