Colhes o que semeias: Quando o arroz não basta para alimentar uma família

— Achas mesmo que precisamos de comprar mais comida, Mariana? — perguntou o Rui, com aquele tom impaciente que já me fazia tremer por dentro. — Temos arroz suficiente para um mês inteiro. Não percebo este teu drama.

Olhei para ele, sentada à mesa da cozinha, com as mãos ainda húmidas de lavar a loiça. O cheiro do arroz simples, sem nada, pairava no ar desde o almoço. Os miúdos tinham torcido o nariz, mas comeram em silêncio. Eu, por dentro, fervia.

— Rui, não é só uma questão de quantidade. Não podemos viver só de arroz! Os miúdos precisam de legumes, de carne, de fruta…

Ele encolheu os ombros, desligando-se da conversa como sempre fazia quando sentia que estava a perder. — Mariana, estás sempre a exagerar. Vais ver que não custa nada. Se calhar até nos faz bem.

Foi nesse momento que decidi: se ele acha que arroz basta, então arroz terá. Não ia comprar mais nada. Ia mostrar-lhe o que era viver com tão pouco.

Naquela noite, deitei-me ao lado dele sem dizer palavra. O silêncio era pesado. Senti o corpo dele afastado do meu, como se estivéssemos em camas separadas. Não dormi. Fiquei a olhar para o teto, a pensar em tudo o que tínhamos construído juntos e em como, de repente, tudo parecia tão frágil.

No dia seguinte, preparei o pequeno-almoço: arroz aquecido com um pouco de leite. Os miúdos olharam para mim com estranheza.

— Mãe, não há pão? — perguntou a Inês, com aquela voz doce que me partia o coração.

— Hoje não há pão, filha. Vamos comer arroz, como o pai sugeriu.

O Rui olhou para mim de soslaio, mas não disse nada. Engoliu o arroz em silêncio e saiu para o trabalho sem se despedir.

Os dias seguintes foram uma repetição do mesmo ritual: arroz ao almoço, arroz ao jantar. Às vezes tentava variar — fazia arroz doce com um pouco de açúcar que ainda restava, ou fritava o arroz para parecer diferente. Mas era sempre arroz.

A Inês começou a reclamar mais alto. O Tiago, mais pequeno, chorava à noite com fome. Eu sentia-me miserável, mas mantinha-me firme na minha decisão. Queria que o Rui percebesse o erro que tinha cometido.

Ao fim de uma semana, o ambiente em casa era insuportável. O Rui chegava tarde do trabalho e mal falava comigo. Os miúdos estavam irritados e tristes. Eu própria já não aguentava ver arroz à frente.

Uma noite, depois de deitar as crianças, sentei-me à mesa da cozinha e esperei pelo Rui. Quando ele entrou, cansado e com olheiras profundas, não resisti:

— Ainda achas que arroz chega para uma família?

Ele olhou para mim durante uns segundos longos demais. Vi-lhe nos olhos a raiva e a frustração.

— Mariana, já chega desta brincadeira! Os miúdos estão a sofrer por tua causa!

Levantei-me de rompante.

— Por minha causa? Foste tu que disseste que arroz chegava! Eu só segui o teu conselho!

A discussão subiu de tom. Gritámos um com o outro como nunca antes. Vieram à tona todas as mágoas guardadas: as contas por pagar, as noites mal dormidas, as saudades dos tempos em que éramos felizes sem pensar tanto no dinheiro.

No meio da discussão, a Inês apareceu à porta da cozinha a chorar.

— Parem! Não quero ouvir mais! — gritou ela.

O silêncio caiu sobre nós como uma pedra pesada. Senti-me envergonhada e derrotada. O Rui passou por mim sem dizer nada e foi para o quarto. Fiquei ali sentada na cozinha escura, a ouvir os soluços da minha filha.

Na manhã seguinte, acordei cedo e fui ao supermercado. Comprei pão fresco, fruta, legumes e carne. Quando cheguei a casa e comecei a preparar o pequeno-almoço, senti um alívio imenso — como se finalmente pudesse respirar outra vez.

O Rui apareceu na cozinha e ficou parado à porta.

— Mariana… desculpa — disse ele baixinho. — Fui um idiota. Só queria poupar dinheiro… mas não pensei nas consequências.

Olhei para ele e vi nos seus olhos o homem por quem me tinha apaixonado — vulnerável e arrependido.

— Eu também exagerei — admiti. — Só queria que percebesses como é difícil gerir tudo sozinha…

Abraçámo-nos ali mesmo, entre o cheiro do pão quente e os risos tímidos dos miúdos ao verem finalmente algo diferente na mesa.

Mas a verdade é que nada ficou igual depois disso. A confiança ficou abalada; as feridas demoraram a sarar. Passámos a falar mais sobre dinheiro e sobre as nossas necessidades reais. Aprendemos a ouvir-nos melhor — ou pelo menos tentámos.

Às vezes dou por mim a pensar: valeu a pena esta lição? Ou só serviu para nos afastar mais um do outro? Será que a vingança traz mesmo alívio ou só nos deixa mais sós?

E vocês? Já sentiram vontade de dar uma lição a alguém que amam? Valeu mesmo a pena?