Cinco Anos Depois: O Eco do Amor de Mãe
— Alexandra, não podes continuar a fugir disto! — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, cortando o silêncio pesado da manhã. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o aroma amargo da culpa que me acompanhava há anos. Olhei para ela, os olhos cansados, as mãos trémulas a segurar a chávena. — O Tomás precisa de ti. Não de uma mãe de fim-de-semana.
A minha garganta apertou-se. Tinha vinte e três anos e sentia-me mais velha do que alguma vez imaginei. Cinco anos antes, grávida aos dezoito, deixei Tomás nos braços dos meus pais em Braga e fui para Lisboa estudar Direito. Dizia a mim mesma que era para lhe dar um futuro melhor, mas no fundo sabia que era também para fugir ao peso esmagador da maternidade precoce.
Durante anos, vivi entre comboios e promessas adiadas. Visitava Tomás aos fins-de-semana, levava-lhe brinquedos novos, contava histórias antes de dormir. Mas nunca fiquei tempo suficiente para ouvir os seus medos ou perceber os seus silêncios. Os meus pais, Maria do Céu e António, tornaram-se os verdadeiros pilares da sua infância.
Na universidade, era a Alexandra brilhante, cheia de ambições. Os colegas invejavam a minha determinação. Ninguém sabia do filho que deixara para trás. O segredo era uma muralha entre mim e o mundo. Só à noite, quando o silêncio caía sobre o quarto alugado em Arroios, chorava baixinho, abraçada ao telemóvel onde guardava as fotos do Tomás.
Mas naquela manhã tudo mudou. O telefone tocou às sete e meia. Era o meu pai, voz trémula:
— Xana… aconteceu um acidente. O Tomás foi atropelado a caminho da escola.
O chão fugiu-me dos pés. Corri para Braga sem sentir o corpo. No hospital, vi-o deitado, tão pequeno na cama branca, o rosto pálido, um arranhão na testa. Os médicos diziam que ia recuperar, mas eu só via o medo nos olhos dele quando me viu.
— Mãe… — sussurrou ele, como se não acreditasse que eu estava ali.
Sentei-me ao lado dele e peguei-lhe na mão. Pela primeira vez em anos, senti o peso real da palavra “mãe”. Não era só um título; era uma responsabilidade que tinha fugido de mim durante demasiado tempo.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. A minha mãe não me perdoava:
— Achas que brinquedos substituem abraços? Que telefonemas chegam para criar um filho? — atirou-me à cara enquanto lavava a loiça.
O meu pai tentava apaziguar:
— Maria do Céu, deixa a rapariga respirar…
Mas eu sabia que ela tinha razão. O Tomás acordava durante a noite a chamar pela avó. Quando eu tentava acalmá-lo, ele afastava-se, desconfiado.
Naquela semana no hospital, vi mães a dormir em cadeiras desconfortáveis, pais a rezar nos corredores. Vi amor em estado bruto, sem filtros nem desculpas. E percebi o quanto tinha perdido ao tentar ser tudo menos mãe.
Quando finalmente trouxemos o Tomás para casa, sentei-me com ele no quarto onde cresceu sem mim. Peguei num dos seus desenhos — um boneco de stick figures: ele, os avós e um espaço vazio ao lado.
— Quem é este? — perguntei.
Ele encolheu os ombros.
— É a mãe… mas está sempre longe.
As lágrimas caíram-me pelo rosto sem controlo. Abracei-o com força.
— Desculpa, meu amor. Desculpa por não ter estado aqui quando precisavas de mim.
Ele ficou quieto durante uns segundos e depois encostou-se ao meu peito.
A partir desse dia, decidi mudar tudo. Pedi transferência para a Faculdade de Direito do Porto para estar mais perto dele. Os meus pais ficaram surpreendidos — e até desconfiados — mas apoiaram-me.
A adaptação foi difícil. Tive de abdicar das festas universitárias, dos jantares com colegas e até de algumas notas brilhantes porque as noites eram passadas ao lado do Tomás quando ele tinha pesadelos ou febre.
Houve dias em que me odiei por ter adiado tanto tempo esta decisão. Outros em que duvidei se conseguiria ser boa mãe depois de tudo o que falhei. Mas cada sorriso tímido do Tomás era um passo na direção certa.
A relação com a minha mãe continuou tensa durante meses:
— Não penses que vais recuperar cinco anos assim do nada — dizia ela.
Eu sabia disso. Mas também sabia que não podia voltar atrás no tempo; só podia lutar pelo presente.
Comecei a ir buscá-lo à escola todos os dias. No início ele corria para os avós; aos poucos começou a procurar-me com o olhar. Fui às reuniões de pais, aprendi os nomes dos amigos dele, ajudei-o nos trabalhos de casa.
Certa noite, depois de lhe ler uma história, ele perguntou:
— Vais embora outra vez?
Senti um nó na garganta.
— Não, filho. Agora vou ficar contigo.
Ele sorriu e adormeceu agarrado à minha mão.
Aos poucos, também eu fui perdoando-me. Percebi que ser mãe não é ser perfeita; é estar presente mesmo quando dói ou quando temos medo de falhar.
Hoje olho para trás e vejo uma Alexandra diferente: menos ambiciosa talvez, mas infinitamente mais humana. O Tomás ensina-me todos os dias o valor da presença e do perdão.
Às vezes pergunto-me: quantas mães vivem presas entre sonhos adiados e culpas antigas? Quantas oportunidades perdemos por medo de enfrentar o que realmente importa?
E vocês? Já tiveram de escolher entre quem amam e quem querem ser? Conseguiram perdoar-se pelas escolhas difíceis?