Casei-me aos Sessenta: Entre o Sonho e o Desencanto
— Não acredito que vais mesmo fazer isto, mãe! — gritou a minha filha, Inês, com os olhos marejados de lágrimas e a voz trémula de raiva. O eco das suas palavras ainda ressoa na minha cabeça, como se o tempo tivesse parado naquele instante. Eu estava sentada à mesa da cozinha, as mãos a tremerem em cima da toalha de linho que a minha mãe me deixara. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o perfume das flores que António me trouxera na véspera, tentando suavizar o ambiente pesado. Mas nada conseguia dissipar aquela nuvem negra.
— Inês, por favor… — tentei argumentar, mas ela já se levantava, empurrando a cadeira com força. — Não percebes que eu também mereço ser feliz? — perguntei, quase num sussurro, mais para mim do que para ela.
A verdade é que nunca imaginei que aos sessenta anos estaria a viver um drama digno de novela. Quando conheci o António no café da vila, há dois anos, senti-me renascer. Ele era viúvo, como eu, e tinha um sorriso tímido mas sincero. Começámos a conversar sobre tudo: os netos, as saudades dos tempos antigos, as dores nas costas e até os sonhos adiados. Foi fácil apaixonar-me por ele. Parecia um conto de fadas tardio, uma segunda oportunidade para quem já tinha perdido tanto.
Mas ninguém me avisou que recomeçar podia ser tão doloroso. Os meus filhos nunca aceitaram bem a ideia. O João, o mais velho, foi o primeiro a mostrar desconfiança:
— Achas mesmo que esse homem gosta de ti? Ou está só atrás da tua reforma? — atirou ele, sem rodeios, numa noite em que jantávamos bacalhau à Brás.
Senti-me humilhada, como se todo o meu valor se resumisse ao dinheiro que recebia todos os meses. Tentei explicar-lhe que António tinha a sua própria pensão, que era honesto e trabalhador. Mas João não quis ouvir. E Inês… Inês sempre foi mais sensível, mas também ela se fechou em copas, afastando-se cada vez mais.
Os meses passaram entre silêncios constrangedores e telefonemas frios. Só a minha neta Mariana parecia entender-me. Tinha doze anos e olhos curiosos:
— Avó, vais casar outra vez? Vais usar vestido branco? — perguntava ela, com uma inocência desarmante.
— Não sei se vou usar branco, querida. Mas gostava que viesses ao casamento — respondi-lhe, tentando sorrir.
No fundo, era por ela — e por mim — que queria tentar outra vez. Queria mostrar-lhe que nunca é tarde para amar.
O dia do casamento chegou envolto em nuvens cinzentas e ameaças de chuva. A cerimónia foi simples, na igreja da aldeia onde cresci. Poucos convidados: alguns vizinhos, duas amigas de infância e Mariana, sentada na primeira fila com um ramo de flores silvestres nas mãos pequenas. Os meus filhos não apareceram.
Quando saí da igreja de braço dado com António, senti um aperto no peito. Não era felicidade pura; era uma mistura agridoce de vitória e derrota. António apertou-me a mão:
— Vai correr tudo bem, Maria. Vais ver — murmurou ele ao ouvido.
Mas não correu. A casa ficou mais silenciosa do que nunca. António era bom homem, mas trazia consigo os seus próprios fantasmas: noites mal dormidas, saudades da mulher que perdera, manias antigas difíceis de partilhar. Às vezes sentávamo-nos lado a lado no sofá e parecia que havia um muro invisível entre nós.
As discussões começaram por coisas pequenas: o canal da televisão, o sal na sopa, a maneira como ele deixava as meias espalhadas pelo quarto. Mas depressa cresceram para algo maior.
— Não achas que estás a exagerar? — perguntava ele quando eu reclamava do seu desleixo.
— E tu não achas que podias tentar adaptar-te um pouco? Esta casa também é minha! — respondia eu, sentindo-me cada vez mais sozinha dentro daquele casamento.
As visitas dos filhos tornaram-se ainda mais raras. Mariana vinha quando podia, mas sentia-se desconfortável com o ambiente pesado. Uma tarde ouvi-a sussurrar ao telefone:
— A avó está diferente… parece triste.
Foi aí que percebi: tinha trocado uma solidão por outra. Antes sentia falta de companhia; agora sentia falta de compreensão.
Certa noite, depois de uma discussão mais acesa sobre dinheiro (o tema favorito do João), sentei-me à janela a olhar para as luzes da aldeia. Chovia lá fora e as gotas escorriam pelo vidro como lágrimas silenciosas.
Lembrei-me da minha mãe: também ela casara tarde pela segunda vez e passara anos a tentar agradar aos outros sem nunca pensar nela própria. Será que estava a repetir o mesmo erro?
António entrou na sala em silêncio e sentou-se ao meu lado.
— Maria… desculpa — disse ele baixinho. — Eu também tenho medo. Medo de não estar à altura do teu amor…
Olhei para ele e vi nos seus olhos a mesma insegurança que sentia em mim. Talvez fosse isso o amor na velhice: duas pessoas cheias de cicatrizes a tentarem construir algo novo sobre ruínas antigas.
Os meses seguintes foram feitos de altos e baixos. Houve dias bons: passeios à beira-rio, tardes de conversa no café, risos partilhados com Mariana quando ela vinha visitar-nos. Mas também houve dias maus: silêncios pesados, saudades dos filhos ausentes, dúvidas constantes sobre as escolhas feitas.
No Natal desse ano decidi convidar toda a família para jantar cá em casa. Preparei tudo com carinho: polvo à lagareiro, rabanadas como a minha mãe fazia, vinho tinto da região. Quando João entrou com os netos pela mão, senti o coração disparar.
O jantar foi tenso no início. João evitava olhar para António; Inês quase não falou comigo. Mas Mariana puxou conversa:
— Avó, conta aquela história do Natal em que nevou!
Aos poucos, as barreiras começaram a cair. Rimos juntos das peripécias antigas; António contou piadas secas mas simpáticas; até Inês sorriu quando lhe servi arroz-doce com canela em forma de coração.
No final da noite, João aproximou-se de mim na cozinha:
— Mãe… desculpa se fui duro contigo. Só quero que sejas feliz — disse ele, abraçando-me com força.
Chorei baixinho nos seus braços. Percebi então que talvez nunca fosse possível agradar a todos nem ter uma felicidade perfeita como nos contos de fadas. Mas talvez bastasse lutar por pequenos momentos de paz e amor.
Hoje olho para trás e pergunto-me: teria feito tudo igual? Terá valido a pena arriscar um novo começo mesmo com tantos obstáculos? E vocês… acreditam que nunca é tarde para tentar ser feliz?