Casada Demasiado Cedo: Uma Vida de Sacrifício e Silêncio
— Não chores, mãe. — A voz da Inês ecoou no corredor, abafada pelo som da chuva a bater nos vidros. Eu tentava não tremer, mas as lágrimas teimavam em cair, silenciosas, enquanto olhava para a porta fechada do quarto do António. Era o nosso aniversário de casamento, quarenta e oito anos de vida e vinte e oito de matrimónio. E ele não estava ali.
Lembro-me bem do dia em que aceitei casar com o António. Tinha dezoito anos, os meus pais diziam que era o melhor para mim. “Ele é trabalhador, tem futuro na fábrica do tio dele, não vais passar necessidades.” O amor? Não se falava disso. O amor era um luxo para as novelas da televisão. Aqui, em Viseu, o que importava era estabilidade. E eu, assustada com a ideia de ficar para tia, aceitei.
A primeira noite depois do casamento foi fria. O António era um homem calado, duro nas mãos e nas palavras. Nunca me bateu, mas também nunca me abraçou sem que fosse por obrigação. Os filhos vieram cedo: a Inês primeiro, depois o Rui. Dediquei-me a eles como quem se agarra a uma tábua de salvação. Acordava cedo para lhes preparar o pequeno-almoço, levava-os à escola, ajudava nos trabalhos de casa. O António chegava tarde da fábrica, com cheiro a óleo e cansaço.
— Mãe, posso ir dormir a casa da Mariana? — perguntou o Rui uma noite, já adolescente.
— Claro, filho. — Sorri-lhe, mas por dentro sentia um vazio cada vez maior. Os filhos cresciam e afastavam-se de mim como barcos à deriva.
O António começou a chegar ainda mais tarde. Dizia que eram horas extra, mas eu sabia que havia algo mais. Uma noite, ouvi-o ao telefone na varanda:
— Não posso agora… Ela está aqui… Sim, amanhã à tarde.
O meu coração gelou. Não era preciso ouvir mais nada.
No meu quadragésimo quinto aniversário, preparei um jantar especial. Vesti o meu vestido azul, pus um pouco de batom — coisa rara em mim — e esperei por ele. Quando entrou em casa, nem olhou para mim.
— António, podemos falar?
Ele largou as chaves na mesa.
— Não vale a pena fingirmos mais, Isabel. — A voz dele era fria como pedra. — Conheci alguém. Vou sair de casa.
O chão fugiu-me dos pés. Senti-me ridícula com o vestido azul e o batom borrado pelas lágrimas que não consegui conter.
Os meses seguintes foram um nevoeiro denso. Os vizinhos cochichavam quando eu passava na rua. A minha mãe dizia-me para ter paciência, que os homens são assim mesmo. Mas eu sentia-me morta por dentro.
A Inês tentou ajudar.
— Mãe, vem passar uns dias comigo ao Porto.
Mas eu não queria ser um peso para ninguém. Fiquei na casa vazia, rodeada de fotografias antigas e silêncios pesados.
Comecei a trabalhar como empregada num café do bairro para ocupar o tempo e não enlouquecer. As mãos tremiam-me quando servia os cafés aos clientes habituais.
— Então, Isabel? O marido já voltou? — perguntava a Dona Amélia com aquele tom de pena disfarçada de curiosidade.
Eu sorria e respondia:
— Não, Dona Amélia. Parece que encontrou melhor companhia.
À noite, deitava-me cedo para não pensar. Mas os pensamentos vinham sempre: “Onde errei? Porque é que nunca fui suficiente?” Lembrava-me das festas da escola dos meus filhos, dos natais em família em que eu era sempre a última a sentar-me à mesa porque estava ocupada a servir todos os outros.
Um dia, encontrei uma carta antiga da Inês:
“Mãe,
Obrigada por tudo o que fazes por nós. Sei que às vezes pareces triste. Espero um dia poder retribuir todo o teu amor. Amo-te muito.
Inês”
Chorei como há muito não chorava. Percebi que tinha passado a vida inteira a cuidar dos outros e nunca de mim mesma.
O António casou-se com a tal mulher nova — uma rapariga vinte anos mais nova do que ele. Vi-os uma vez no supermercado: ela riu-se alto quando ele lhe tocou no braço. Senti inveja daquela leveza que nunca tive.
Os meus filhos visitam-me ao domingo. Trazem os netos, falam das suas vidas agitadas na cidade. Eu sorrio e faço bolos como sempre fiz, mas sinto-me uma figurante na minha própria história.
Uma noite, depois de todos irem embora, sentei-me à janela a olhar para as luzes da cidade ao longe e perguntei-me: “E agora? Quem sou eu sem eles? Sem o papel de mãe dedicada ou esposa sacrificada?”
Tentei inscrever-me numa aula de pintura no centro cultural da vila. As outras mulheres eram mais novas ou então viúvas alegres que falavam dos seus namorados do lar de idosos. Senti-me deslocada.
Mas continuei a ir. Comecei a pintar quadros pequenos: paisagens tristes, retratos sem rosto. A professora elogiou o meu traço:
— Tem muita emoção aqui dentro, Isabel.
Pela primeira vez em muitos anos senti orgulho em algo meu.
Hoje faço 48 anos. Os meus filhos ligaram cedo a dar os parabéns; o António não ligou — já não espero nada dele. Passei o dia sozinha mas não me senti tão vazia como antes.
À noite escrevi no meu diário:
“Será possível recomeçar depois de uma vida inteira dedicada aos outros? Será tarde demais para descobrir quem sou realmente?”
E vocês? Acham que é possível encontrar sentido quando tudo aquilo por que vivemos desaparece? O que fariam se tivessem de começar do zero aos 48 anos?