Casa Dividida: O Diário de uma Madrasta Portuguesa
— Teresa, não podes continuar assim! — gritou Sofia, a minha enteada, enquanto largava a mala no chão da sala. O relógio marcava 10h da manhã de sábado e, como sempre, eu já estava de avental, a tentar preparar o almoço para oito pessoas. O cheiro do refogado misturava-se com o perfume forte da Sofia, e o barulho das crianças a correr pela casa fazia eco nas paredes.
Senti o coração apertar. O meu marido, António, olhou-me de relance, mas não disse nada. Era sempre assim: ele calava-se, como se o silêncio resolvesse tudo. Eu, por outro lado, sentia cada palavra não dita como uma faca cravada no peito.
— Não posso continuar assim como, Sofia? — perguntei, tentando manter a voz firme.
Ela revirou os olhos. — Sempre com essa cara de mártir! Achas que não noto? Fazes tudo para parecer a vítima. — A voz dela era cortante, e eu senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos.
As crianças — os meus netos por afinidade — já tinham espalhado brinquedos pela sala toda. O pequeno Miguel gritava por um sumo, enquanto a Leonor puxava-me pela saia.
— Avó Teresa, posso ver desenhos animados? — perguntou ela, com aquela inocência que me desarmava sempre.
Sorri-lhe, mas por dentro sentia-me esgotada. Não era avó de sangue, mas era a única que estava ali para eles todos os fins de semana. E ninguém parecia reparar no esforço.
António aproximou-se finalmente e pousou uma mão no meu ombro.
— Deixa estar, Teresa. Vai correr tudo bem. — Mas eu sabia que ele dizia aquilo só para não ter de escolher lados.
O almoço foi um caos. Sofia criticou o arroz (“A minha mãe fazia-o melhor”), o marido dela reclamou da falta de vinho do Douro (“Sempre este vinho barato!”), e as crianças recusaram-se a comer legumes. Eu sentia-me cada vez mais pequena à mesa da minha própria casa.
Depois do almoço, enquanto lavava a loiça sozinha — porque ninguém se ofereceu para ajudar — ouvi Sofia a falar baixo com António na varanda.
— Ela não faz parte da família, pai. Nunca fez. Só está aqui porque tu precisas de companhia.
As palavras dela atravessaram-me como um raio. Senti-me invisível, descartável. Lembrei-me dos primeiros anos com António: ele viúvo, eu divorciada, ambos à procura de um novo começo. Achei que poderia construir uma família com ele, mas nunca imaginei que seria sempre uma estranha na casa onde vivo há mais de vinte anos.
À noite, depois de todos irem embora, sentei-me no sofá com António. Ele tentou abraçar-me, mas afastei-me.
— Porque é que nunca me defendes? — perguntei-lhe em voz baixa.
Ele suspirou. — Teresa… são as minhas filhas. Não quero perder o contacto com elas.
— E eu? Não tens medo de me perder a mim?
Ele ficou em silêncio. O silêncio dele era pior do que qualquer discussão.
No domingo acordei cedo e fui dar uma volta pelo bairro antigo onde cresci. As ruas de calçada molhada lembravam-me os tempos em que tudo parecia mais simples: os vizinhos à janela, os cheiros do pão quente da padaria da Dona Emília, as tardes passadas a brincar na rua sem medo do futuro.
Sentei-me num banco do jardim e chorei baixinho. Senti falta da minha mãe, que sempre dizia: “Teresa, nunca deixes que te apaguem.” Mas era isso mesmo que sentia: apagada.
Durante a semana tentei falar com António sobre limites. Disse-lhe que precisava de respeito na minha própria casa, que não podia continuar a ser tratada como uma empregada ou uma intrusa.
Ele prometeu que ia falar com Sofia. Mas no sábado seguinte tudo se repetiu: críticas veladas, indiferença, brinquedos espalhados por todo o lado e eu sozinha na cozinha.
Um dia perdi a cabeça. Quando Sofia reclamou do jantar (“Outra vez bacalhau?”), bati com força no balcão e gritei:
— Se não gostam da comida, podem ir comer fora! Estou farta de ser maltratada nesta casa!
O silêncio foi absoluto. As crianças olharam para mim assustadas. António ficou branco como a cal.
Sofia levantou-se devagar e disse:
— Talvez seja melhor começarmos a almoçar em casa da mãe.
Saíram todos sem dizer mais nada. Fiquei ali parada, com as mãos a tremer e o coração aos saltos.
Nessa noite António não falou comigo. Dormiu no sofá. Eu chorei até adormecer.
Nos dias seguintes a casa parecia um túmulo. António evitava-me, eu evitava-o. Senti-me culpada pelas crianças, mas também aliviada por finalmente ter imposto um limite.
Uma semana depois António veio ter comigo à cozinha.
— Falei com a Sofia — disse ele em voz baixa. — Ela vai dar-te espaço. E eu… desculpa por não te ter defendido antes.
Olhei para ele e vi nos olhos dele um homem cansado, dividido entre duas famílias que nunca se encaixaram verdadeiramente.
— António… eu amo-te. Mas não posso continuar a viver assim. Preciso de sentir que pertenço aqui.
Ele abraçou-me finalmente com força. Pela primeira vez em muitos anos senti que talvez houvesse esperança para nós dois.
Hoje escrevo este diário para não me esquecer de quem sou e do que preciso para ser feliz. Sei que muitas madrastas portuguesas vivem este mesmo dilema: entre o amor e o sacrifício, entre o desejo de pertencer e o medo de nunca ser aceite.
Será possível construir uma família onde todos se sintam vistos e respeitados? Ou estaremos sempre condenados a viver em casas divididas? Gostava tanto de ouvir as vossas histórias…