Cartas Escondidas: O Segredo de Trinta e Cinco Anos

— Não mexas nessas caixas, mãe. Deixa isso para depois — disse a minha filha, Inês, com a voz embargada, enquanto eu me ajoelhava junto ao armário do quarto. O cheiro do perfume do António ainda pairava no ar, misturado com o pó dos anos e o silêncio pesado da ausência.

— Preciso de fazer isto, Inês. Preciso de sentir que ainda posso cuidar de alguma coisa — respondi, tentando não tremer. As mãos, porém, não me obedeciam. Cada camisa dobrada era uma recordação, cada fotografia um punhal.

Foi então que encontrei a caixa. Uma caixa de sapatos antiga, escondida atrás das mantas de lã que a mãe dele me dera no nosso primeiro Natal juntos. O coração bateu-me mais forte. Não era o tipo de coisa que o António faria — esconder algo de mim. Ou talvez fosse, afinal.

Abri a caixa devagar. Dentro, dezenas de cartas cuidadosamente atadas com um fio azul desbotado. O meu nome não estava em nenhuma delas. O destinatário era sempre o mesmo: “Maria Clara Alves”. O remetente? O punho inconfundível do António.

— Mãe? — A Inês aproximou-se, preocupada. — O que é isso?

— Cartas — sussurrei, sentindo o chão fugir-me dos pés.

Li a primeira carta com as mãos trémulas:

“Querida Clara,
Hoje sonhei contigo outra vez. A tua gargalhada ecoou pela casa vazia e acordei com saudades do tempo em que tudo era mais simples…”

As palavras eram íntimas, ternas, cheias de uma saudade que nunca conheci no António. Continuei a ler, carta após carta, enquanto as lágrimas me escorriam pelo rosto. Descobri um António apaixonado, vulnerável, capaz de poesia e de dor. Descobri que durante trinta e cinco anos ele escreveu para a mulher que foi o seu primeiro amor — uma mulher que não era eu.

A Inês sentou-se ao meu lado e pegou-me na mão.

— Achas que ele…?

— Não sei — interrompi-a. — Não sei nada neste momento.

Naquela noite não dormi. Sentei-me à mesa da cozinha, rodeada pelas cartas e pelo silêncio ensurdecedor da casa vazia. Relembrei cada discussão, cada reconciliação, cada aniversário celebrado com bolo de chocolate e vinho do Porto. Teria sido tudo uma mentira? Ou teria ele amado duas mulheres ao mesmo tempo?

No dia seguinte, liguei à minha cunhada Teresa. Ela sempre fora próxima do António, mais do que eu gostaria de admitir.

— Teresa, preciso de falar contigo. É urgente.

Encontrámo-nos no café da esquina. Ela chegou atrasada, como sempre, mas o olhar dela denunciava preocupação.

— O que se passa?

Mostrei-lhe uma das cartas. Ela leu em silêncio e pousou-a na mesa.

— Sabes… eu sabia da Maria Clara — confessou, baixando os olhos. — Eles foram namorados antes de tu apareceres. Ele nunca esqueceu aquele verão em Sesimbra.

— E tu nunca me disseste nada? — perguntei, sentindo-me traída por todos à minha volta.

— Não era assunto meu. Ele escolheu-te a ti. Casou contigo, teve filhos contigo…

Mas será que me escolheu mesmo? Ou fui apenas a segunda opção?

Nos dias seguintes, tentei continuar a minha vida: ir ao supermercado, pagar contas, cuidar dos netos quando a Inês precisava de trabalhar. Mas tudo me parecia falso, como se eu fosse uma atriz numa peça escrita por outra pessoa.

Uma tarde, decidi procurar Maria Clara Alves. Encontrei-a através de uma amiga comum da paróquia. Morava numa aldeia perto de Santarém. Fui até lá sem avisar ninguém.

Quando bati à porta dela, senti-me ridícula e desesperada ao mesmo tempo. Uma mulher elegante abriu a porta. Tinha os cabelos brancos apanhados num coque e um sorriso triste nos lábios.

— Posso ajudar?

— Sou a Leonor… mulher do António.

O sorriso dela desvaneceu-se.

— Entre — disse apenas.

Sentámo-nos na sala dela, rodeadas por fotografias antigas e móveis de madeira escura. Mostrei-lhe as cartas.

— Ele nunca as enviou — disse ela, folheando-as com cuidado. — Eu também escrevi algumas… mas nunca tive coragem de as enviar.

Ficámos em silêncio durante muito tempo.

— Amou-o? — perguntei finalmente.

Ela sorriu tristemente.

— Sempre. Mas ele escolheu outro caminho… E eu também.

Saí dali sem respostas claras, mas com uma estranha sensação de paz. Talvez o amor seja mesmo assim: imperfeito, cheio de arestas e silêncios.

Quando cheguei a casa, a Inês esperava-me preocupada.

— Onde estiveste?

— Fui conhecer uma parte do teu pai que nunca conheci — respondi apenas.

À noite sentei-me sozinha na varanda e reli uma última vez as cartas do António para a Maria Clara. Senti raiva, tristeza e até inveja daquela paixão secreta. Mas também senti gratidão por ter partilhado uma vida inteira com ele — mesmo que não tenha sido perfeita ou totalmente minha.

Agora pergunto-me: será que alguma vez conhecemos verdadeiramente quem amamos? Ou será que todos guardamos segredos para sobreviver ao peso dos dias? Gostava de saber o que vocês fariam no meu lugar.