Carta de Natal da pequena Leonor: Um coração dividido entre duas famílias
— Leonor, o que é isto?
A voz da Dona Teresa ecoou pelo corredor frio da casa. Eu estava sentada no chão do meu quarto, com as pernas cruzadas, a olhar para a janela embaciada. O papel amassado na mão dela era a minha carta ao Pai Natal. O meu coração disparou — não era suposto ninguém a ler. Era só para mim… e para ele.
— Não devias mexer nas minhas coisas — murmurei, sentindo as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos.
Ela aproximou-se, sentou-se ao meu lado e pousou a carta entre nós. O silêncio pesava. O relógio da sala marcava as horas, cada tic-tac uma martelada no meu peito.
— Leonor, tu pediste ao Pai Natal… uma família para sempre? — perguntou ela, com a voz embargada.
Não respondi. Baixei os olhos para o chão, onde o tapete gasto mostrava as marcas de tantas outras crianças que ali tinham passado antes de mim. Eu tinha oito anos e já sabia que os adultos não ficam para sempre. Já tinha mudado de casa três vezes. Já tinha aprendido a não me apegar.
Mas este Natal era diferente. A escola estava cheia de luzes, as outras crianças falavam dos presentes, dos jantares em família, das tradições. E eu… eu só queria pertencer a alguém.
— Leonor — insistiu a Dona Teresa —, sabes que gostamos muito de ti, não sabes?
— Mas eu não sou vossa filha — atirei, com uma raiva que nem sabia que tinha dentro de mim. — Vocês dizem sempre que sou especial, mas nunca dizem que sou vossa.
Ela ficou calada. O Sr. Manuel apareceu à porta, com o avental ainda sujo do jantar.
— O que se passa aqui?
— A Leonor escreveu uma carta ao Pai Natal — explicou a Dona Teresa, mostrando-lhe o papel.
Ele leu em silêncio. Vi-lhe os olhos brilharem, mas fingiu que não era nada.
— Sabes, Leonor — começou ele, sentando-se também —, às vezes o coração quer coisas que nós não sabemos dar. Mas tentamos.
Eu queria gritar. Queria perguntar porque é que nunca me tinham dito se podia ficar ali para sempre. Porque é que todos os anos me diziam para não criar expectativas. Porque é que eu tinha de ser sempre a menina “de passagem”.
Na escola, a professora Ana perguntara-nos o que queríamos para o Natal. A Mariana queria uma bicicleta nova. O Tiago queria um cão. Eu queria uma mãe e um pai que fossem meus, só meus.
Naquela noite, depois do jantar, fechei-me no quarto e chorei baixinho. Olhei para as fotos na parede: crianças sorridentes que já tinham partido dali. Será que alguma delas tinha encontrado uma família?
No dia seguinte, quando acordei, ouvi vozes na cozinha. Reconheci a voz da assistente social, Dona Filomena.
— Ela está aqui há dois anos — dizia ela. — Está na altura de pensarmos no futuro da Leonor.
O meu coração gelou. “Futuro” era sempre uma palavra perigosa para crianças como eu.
Fiquei à escuta atrás da porta.
— Nós gostamos muito dela — disse o Sr. Manuel —, mas sabemos que não somos os pais dela.
— E se ela nunca for adotada? — perguntou a Dona Teresa, com um fio de voz.
— Temos de lhe dar estabilidade — respondeu a assistente social. — Não podemos deixá-la criar falsas esperanças.
Falsas esperanças… Era tudo o que eu tinha.
Na escola, nesse dia, não consegui concentrar-me. A Mariana percebeu e sentou-se ao meu lado no recreio.
— Estás triste?
Encolhi os ombros.
— Os meus pais discutiram ontem — disse ela, como se isso fosse consolo. — Acho que vão separar-se.
Olhei para ela e pensei: pelo menos tens pais para discutir.
Quando voltei para casa, encontrei uma surpresa: uma carta em cima da cama. Era da minha mãe biológica. Não a via desde os quatro anos. As letras eram trémulas:
“Querida Leonor,
Penso em ti todos os dias. Sei que não fui capaz de cuidar de ti como merecias. Espero que um dia me perdoes. Amo-te sempre.
Mãe”
Senti um nó na garganta. Não sabia se devia odiá-la ou amá-la. Porque é que me tinha deixado? Porque é que agora escrevia?
À noite, tentei perguntar à Dona Teresa:
— Porque é que a minha mãe me deixou?
Ela suspirou e puxou-me para o colo.
— Às vezes os adultos fazem escolhas erradas, Leonor. Mas isso não tem nada a ver contigo. Tu és maravilhosa.
Mas eu não queria ser maravilhosa. Queria ser filha de alguém.
Os dias passaram devagar até à véspera de Natal. A casa cheirava a bolo-rei e canela. O Sr. Manuel montava o presépio com todo o cuidado. Eu ajudava, mas sentia-me como uma peça fora do lugar.
À noite, sentámo-nos todos à mesa: eu, Dona Teresa, Sr. Manuel e mais duas crianças mais novas, também acolhidas temporariamente. Trocámos presentes simples: um livro usado, um cachecol tricotado à mão.
Quando chegou a minha vez de abrir o presente, vi um envelope com o meu nome.
Abri devagarinho. Lá dentro estava uma fotografia nossa: eu entre eles dois, sorridente no verão passado na praia da Nazaré.
Atrás da foto vinha escrito: “Família é quem te ama todos os dias”.
Olhei para eles e chorei sem vergonha.
— Vocês são a minha família? — perguntei baixinho.
A Dona Teresa abraçou-me com força:
— Somos enquanto tu quiseres ser nossa filha do coração.
O Sr. Manuel limpou as lágrimas disfarçadamente:
— E mesmo quando cresceres e fores embora… vamos estar sempre aqui para ti.
Naquela noite sonhei com um lar cheio de luzes e risos. Não era perfeito nem para sempre como nos filmes, mas era real e era meu por agora.
No dia seguinte recebi outra carta da minha mãe biológica. Desta vez dizia apenas: “Posso ver-te?”
Mostrei-a à Dona Teresa, cheia de medo e esperança ao mesmo tempo.
Ela olhou-me nos olhos:
— Queres vê-la?
Não sabia responder. Tinha medo de sofrer outra vez. Mas também tinha saudades de algo que nunca tive verdadeiramente.
Marcámos um encontro num parque público em Lisboa. Quando vi a minha mãe ao longe, reconheci-a logo: cabelo escuro apanhado num rabo-de-cavalo, olhar cansado mas doce.
Aproximou-se devagarinho:
— Olá, Leonor…
Fiquei sem saber o que dizer. Ela ajoelhou-se à minha frente:
— Desculpa…
Eu só consegui abraçá-la e chorar tudo o que tinha guardado dentro de mim durante anos.
Depois desse dia vi-a mais algumas vezes. Nunca foi fácil: havia silêncios pesados, perguntas sem resposta e muita mágoa por sarar.
Mas percebi finalmente que família não é só quem nos põe no mundo ou quem nos acolhe quando estamos perdidos: família são todos os pedaços de amor que vamos juntando pelo caminho.
Hoje sou adulta e olho para trás com gratidão por cada Natal vivido naquela casa simples dos arredores de Lisboa — por cada abraço roubado à tristeza e cada sorriso partilhado à mesa pequena mas cheia de esperança.
Pergunto-me muitas vezes: quantas crianças como eu continuam à espera desse milagre discreto chamado pertença? E vocês? O que acham que faz realmente uma família?