Bilhetes de Última Hora: Presente ou Descuido?

— Outra vez, Ian? — murmurei, segurando o envelope branco com o meu nome rabiscado à pressa. O relógio da cozinha marcava 18h15 e eu ainda tinha a loiça do jantar para lavar, a roupa para apanhar e a minha mãe a reclamar do outro lado da porta: — Emília, não te esqueças que hoje é o jantar com a tia Rosa! —

Abri o envelope com dedos trémulos. Dois bilhetes para o Teatro Nacional D. Maria II. A peça começava às 20h30. Faltavam pouco mais de duas horas. O Ian, sempre o Ian, com as suas surpresas de última hora. Lembrei-me do aniversário em que apareceu com um bolo ainda congelado e das vezes em que me ligou à meia-noite para ir ver as estrelas no Miradouro de Santa Catarina. Desta vez, tinha-se superado.

Peguei no telemóvel e liguei-lhe imediatamente.

— Ian, estás maluco? Achas mesmo que posso largar tudo e ir ao teatro assim, do nada?

Do outro lado, ouvi o riso despreocupado dele.

— Vá lá, Emília! Precisas de sair, divertir-te. A peça é incrível! E eu sabia que ias arranjar maneira.

Suspirei. O Ian nunca entendia. Para ele, a vida era feita de impulsos e surpresas. Para mim, era feita de listas e compromissos. Olhei para a minha mãe, que agora me fitava com os braços cruzados.

— Não me digas que vais faltar ao jantar da tua tia por causa de mais uma das ideias do Ian — disse ela, num tom entre o desdém e a preocupação.

Senti o peso da escolha a esmagar-me. A família sempre foi tudo para mim, mas ultimamente sentia-me presa numa rotina sufocante. O Ian era o único que tentava puxar-me para fora desse ciclo.

— Mãe, são só bilhetes para o teatro…

— Só bilhetes? E a tua palavra? A tua tia faz questão de te ver hoje. Já não chega teres faltado ao almoço de domingo passado?

O nó na garganta apertou-se. Queria gritar que precisava de um tempo só para mim, mas sabia que não seria compreendida.

Voltei ao telefone:

— Ian, não sei se consigo…

Ele interrompeu-me:

— Emília, por favor. Faz isto por ti. Se não quiseres ir comigo, leva quem quiseres. Mas vai.

Desliguei sem responder. Sentei-me à mesa da cozinha, os bilhetes entre os dedos. O cheiro do arroz de pato no forno misturava-se com o perfume do papel novo dos bilhetes. Senti-me dividida entre dois mundos: o previsível e seguro da família e o imprevisível e excitante das aventuras do Ian.

A campainha tocou. Era a minha irmã mais nova, a Marta.

— Que cara é essa? — perguntou ela, largando a mochila no chão.

Mostrei-lhe os bilhetes.

— O Ian deixou-os na caixa do correio. Quer que vá ao teatro hoje à noite.

Os olhos dela brilharam.

— Teatro? Eu adorava ir! — exclamou. — Mas… e o jantar?

— Pois… — respondi, sem saber o que fazer.

A Marta sentou-se ao meu lado e pegou na minha mão.

— Sabes, às vezes acho que vivemos demasiado para os outros. Talvez devesses ir. A tia Rosa vai perceber…

A porta da cozinha abriu-se com estrondo. A minha mãe entrou, visivelmente irritada.

— O que se passa aqui? Estão a conspirar contra mim?

Expliquei-lhe tudo, tentando não levantar a voz. Ela abanou a cabeça.

— Sempre foste assim, Emília. Deixas-te levar pelos outros e esqueces-te da família.

As palavras dela magoaram-me mais do que queria admitir. Senti as lágrimas a quererem saltar dos olhos.

A Marta levantou-se e enfrentou a mãe:

— Mãe, a Emília merece uma noite diferente! Não é justo obrigá-la a estar sempre presente quando ela também precisa de viver!

O silêncio caiu sobre nós como uma nuvem pesada. Por fim, a minha mãe suspirou.

— Faz o que quiseres… — disse ela, saindo da cozinha.

Fiquei ali sentada durante longos minutos. A Marta abraçou-me.

— Vai ao teatro comigo — sussurrou ela. — Vamos as duas. A mãe vai acabar por perceber.

Olhei para ela e sorri pela primeira vez naquele dia.

Duas horas depois, estávamos sentadas na plateia do D. Maria II. As luzes apagaram-se e senti uma onda de liberdade invadir-me. Durante aquelas duas horas esqueci-me dos problemas, das discussões e das expectativas dos outros.

No final da peça, saímos para a noite fresca de Lisboa. A Marta ria-se ainda das cenas mais engraçadas e eu sentia-me leve como há muito não me sentia.

O telemóvel vibrou: uma mensagem do Ian.

“Espero que tenhas gostado. Às vezes precisamos mesmo de um empurrão.”

Sorri. Talvez ele tivesse razão. Talvez eu precisasse mesmo de sair da minha zona de conforto de vez em quando.

Quando cheguei a casa, a minha mãe esperava-me na sala.

— Divertiste-te? — perguntou ela, num tom menos duro.

Assenti.

— Muito. E acho que precisava mesmo disto.

Ela olhou para mim durante uns segundos e depois sorriu levemente.

— Só não te esqueças de quem está sempre aqui para ti.

Subi para o meu quarto com o coração apertado mas feliz. Deitei-me na cama e fiquei a olhar para o teto escuro.

Será que é possível agradar a todos sem nos perdermos pelo caminho? Ou será que às vezes temos mesmo de escolher entre nós próprios e os outros?