Baka, perdoa-me por te ter esquecido

— Inês, desculpa meter-me, mas a tua avó não tem comido nada há três dias. — A voz da Dona Rosa, a vizinha do terceiro esquerdo, ecoou-me nos ouvidos como um trovão inesperado numa tarde abafada de agosto.

Fiquei parada à porta do supermercado, com o saco de arroz a escorregar-me das mãos. O mundo à minha volta parecia continuar — carros a passar, crianças a rir, o cheiro a pão quente vindo da padaria — mas dentro de mim tudo parou. Como é que eu não sabia? Como é que deixei isto acontecer?

— Tem a certeza, Dona Rosa? — perguntei, tentando disfarçar o tremor na voz.

— Tenho, filha. Ontem fui lá levar-lhe pão e ela nem abriu a porta. Hoje ouvi-a tossir, mas não respondeu quando bati. — O olhar dela era uma mistura de preocupação e julgamento.

Corri para casa da minha avó, no rés-do-chão do prédio onde cresci. O corredor cheirava a mofo e a memórias antigas. Bati à porta com força.

— Avó? Sou eu, Inês!

Do outro lado ouvi um arrastar lento de passos. A porta abriu-se uma nesga e vi os olhos dela, baços e cansados.

— Inês… — murmurou, como se o meu nome lhe doesse na boca.

Entrei sem pedir licença. A casa estava fria, as cortinas corridas, pratos sujos na mesa. Senti uma pontada de vergonha. Quando foi a última vez que vim cá? Duas semanas? Três?

— Avó, porque não me ligaste? — perguntei, tentando controlar as lágrimas.

Ela encolheu os ombros, sentando-se devagar na cadeira da cozinha.

— Não quis incomodar. Tu tens a tua vida…

A minha vida. O trabalho no escritório de advogados, as discussões constantes com o meu irmão Rui sobre quem devia cuidar da avó, as mensagens por responder no telemóvel. Sempre a correr, sempre atrasada para tudo — menos para o sentimento de culpa que agora me esmagava o peito.

Preparei-lhe um prato de sopa aquecida no micro-ondas e sentei-me ao lado dela. O silêncio era pesado.

— Avó, tens de me dizer quando precisas de ajuda. — A minha voz saiu mais dura do que queria.

Ela olhou para mim com uma tristeza antiga.

— Quando era nova, ninguém me perguntava se precisava de ajuda. Agora… parece que sou um fardo.

Fiquei sem palavras. Lembrei-me das histórias que ela contava sobre a infância em Trás-os-Montes, dos invernos duros e das mãos gretadas pelo frio. Sempre forte, sempre a cuidar dos outros. Agora era ela quem precisava de ser cuidada — e eu falhei.

Naquela noite liguei ao Rui.

— Rui, temos de falar sobre a avó. Ela não tem comido, está sozinha…

Do outro lado ouvi um suspiro impaciente.

— Inês, eu tenho dois miúdos pequenos e a Andreia está quase a parir outra vez. Não posso fazer tudo! Tu é que moras mais perto.

A raiva subiu-me à garganta.

— Não é só minha responsabilidade! Somos os dois netos dela!

— Olha, faz como quiseres. Eu ajudo quando puder — respondeu ele antes de desligar.

Fiquei a olhar para o telemóvel como se ele pudesse dar-me respostas. Senti-me sozinha, esmagada pelo peso de uma família que parecia desmoronar-se aos poucos.

Nos dias seguintes tentei organizar-me: levava compras à avó depois do trabalho, preparava-lhe refeições para congelar, sentava-me com ela a ver novelas mesmo quando só me apetecia dormir. Mas nada parecia suficiente. Ela continuava calada, os olhos perdidos na televisão ou na janela da sala.

Uma tarde encontrei-a a chorar baixinho no quarto.

— Avó? O que se passa?

Ela limpou as lágrimas com as costas da mão.

— Sinto falta do teu avô… E dos meus filhos pequenos… Agora só tenho saudades e silêncio.

Sentei-me na cama ao lado dela e abracei-a. Senti o corpo dela frágil nos meus braços e percebi que o tempo não perdoa ninguém.

Comecei a ir mais vezes lá a casa. Às vezes levava o Rui e os sobrinhos para animar o ambiente. Outras vezes discutíamos sobre quem devia pagar as contas ou levar a avó ao médico. As conversas acabavam quase sempre em gritos ou silêncios constrangedores.

Uma noite, depois de mais uma discussão com o Rui sobre o lar de idosos — ele queria pô-la num lar moderno em Cascais; eu achava que ela devia ficar em casa — sentei-me sozinha na varanda da minha avó e chorei até não ter mais lágrimas.

Lembrei-me da infância: dos verões passados naquela casa, das tardes em que ela me ensinava a fazer bolos de laranja e me contava histórias de lobisomens e mouras encantadas. Onde foi parar essa ligação? Em que momento deixámos de ser família para sermos apenas estranhos ligados pelo sangue?

O tempo passou e a saúde da avó piorou. Um dia caiu na cozinha e partiu o braço. No hospital disseram-nos que ela precisava de cuidados constantes. O Rui insistiu no lar; eu resisti até ao último momento.

Na última noite antes dela ir para o lar sentei-me ao lado da cama dela e segurei-lhe a mão.

— Desculpa, avó. Desculpa por não ter estado mais presente…

Ela sorriu-me com ternura triste.

— A vida é assim, filha. Não te culpes tanto… Só peço que não me esqueças.

Prometi-lhe que não esqueceria — mas sabia que já tinha esquecido demasiado.

Agora visito-a todos os domingos no lar. Levo-lhe bolos caseiros e fotografias antigas. Às vezes ela reconhece-me; outras vezes chama-me pelo nome da minha mãe ou fica apenas a olhar para mim em silêncio.

Cada visita é uma mistura de dor e gratidão: dor pelo tempo perdido; gratidão pelo pouco tempo que ainda temos.

Às vezes pergunto-me: quantas famílias vivem assim? Quantos netos sentem esta culpa silenciosa? Será possível recuperar o que se perdeu ou estamos todos condenados a esquecer quem mais amamos?