“Avó, quero dar-te um cãozinho para não te sentires tão sozinha sem o Avô”: O Gesto do Nathan e as Suas Consequências Inesperadas

— Avó, posso entrar? — ouvi a voz do Nathan, hesitante, do outro lado da porta. Era uma manhã fria de fevereiro, e eu estava sentada na sala, enrolada no xaile que o António me ofereceu no nosso último Natal juntos. O silêncio da casa era tão pesado que até o ranger do soalho parecia um grito.

— Claro, querido. — tentei sorrir, mas a minha voz saiu rouca.

Nathan entrou com um sorriso nervoso e um embrulho estranho nos braços. Só quando o embrulho se mexeu é que percebi: era um cachorro minúsculo, de olhos vivos e pelo castanho-claro.

— Trouxe-te um amigo, avó. Para não te sentires tão sozinha sem o avô…

O meu coração apertou-se. Senti uma onda de ternura pelo gesto, mas também uma dor aguda — como se alguém tivesse aberto uma ferida mal sarada. O António sempre quis ter um cão, mas eu nunca deixei. Dizia que a casa era pequena demais, que dava trabalho… Agora era tarde demais.

— Oh, Nathan… — murmurei, tentando segurar as lágrimas. — Não precisavas…

Ele sorriu, orgulhoso. — Chama-se Bolota! O pai ajudou-me a escolher.

Ouvimos passos apressados no corredor. Era o meu filho, Miguel, com a testa franzida.

— Nathan! Eu disse-te para esperares por mim! — ralhou ele, olhando-me de relance. — Mãe… desculpa. O Nathan insistiu tanto…

— Não faz mal, Miguel. — respondi, mas ele já estava a olhar para o cão com desconfiança.

— Isto vai dar trabalho, mãe. Tens a certeza que consegues? — perguntou ele, baixando a voz.

Senti-me magoada. Desde que o António morreu, parecia que todos duvidavam da minha capacidade de viver sozinha. Como se eu fosse uma criança outra vez.

— Não sou inválida, Miguel. — respondi, mais seca do que queria.

Nathan ficou calado, olhando para mim e para o pai como se tivesse feito algo terrível.

— Eu só queria ajudar… — murmurou ele.

Abracei-o com força. — Eu sei, querido. Obrigada.

Mas naquela noite, depois de todos irem embora e a casa voltar ao silêncio habitual (agora interrompido pelos guinchos do Bolota), dei por mim a chorar baixinho na cozinha. O cãozinho olhava para mim com olhos grandes e inocentes. Senti-me ridícula por não saber lidar nem com um animal tão pequeno.

Os dias seguintes foram um caos: o Bolota roeu os chinelos do António (os únicos que ainda guardava), fez xixi no tapete da sala e ladrava sempre que ouvia barulhos vindos da rua. A vizinha do lado, Dona Lurdes, bateu-me à porta duas vezes para reclamar do barulho.

— Ó Maria do Céu, já não tens idade para estas aventuras! — disse ela, abanando a cabeça.

Senti-me humilhada. No supermercado, ouvi sussurros: “Coitada da Maria do Céu… perdeu o juízo desde que ficou viúva.”

O Miguel começou a aparecer mais vezes em casa, sempre com aquele ar preocupado.

— Mãe, queres mesmo ficar com o cão? Posso arranjar-lhe outra casa…

— Não! — respondi mais alto do que pretendia. O Bolota já fazia parte da casa. E talvez fosse isso mesmo que me assustava: como é que um animal podia ocupar tanto espaço no vazio deixado pelo António?

Uma noite, enquanto arrumava fotografias antigas, encontrei uma carta do António que nunca tinha lido. Estava escondida entre as páginas de um livro de receitas. As mãos tremiam-me enquanto abria o envelope amarelecido.

“Minha Céu,
Se algum dia me faltar antes de ti (e sabes como sou dramático), quero que prometas duas coisas: não deixes de viver e não tenhas medo de te reinventar. Se algum dia te sentires sozinha demais… adota um cãozinho. Eles sabem amar como ninguém.”

Chorei como há muito não chorava. Senti o António ali ao meu lado, a rir-se da minha teimosia.

No dia seguinte, decidi levar o Bolota ao parque. Lá encontrei outras pessoas — algumas viúvas como eu — e pela primeira vez em meses senti-me parte de alguma coisa maior do que a minha dor.

Mas os problemas familiares não desapareceram. O Miguel continuava a insistir:

— Mãe, tens de pensar no futuro! E se te acontece alguma coisa? Quem fica com o cão?

— E se me acontece alguma coisa sem cão? Quem fica comigo? — respondi-lhe num acesso de irritação.

A discussão subiu de tom. A minha nora, Filipa, tentou acalmar-nos:

— Miguel, deixa a tua mãe viver! Ela merece ser feliz à maneira dela.

O Nathan chorou ao ouvir-nos discutir.

— A culpa é minha! Nunca devia ter trazido o Bolota!

Abracei-o com força.

— Não digas isso, meu amor. O Bolota trouxe-me de volta à vida.

Nessa noite sonhei com o António. Ele ria-se e dizia: “Vês? Sempre te disse que eras mais forte do que pensavas.”

Os meses passaram e fui aprendendo a viver com o Bolota — e com as minhas próprias limitações. Aprendi a pedir ajuda quando precisava e a aceitar que não tinha de ser perfeita para merecer companhia ou amor.

No Natal seguinte, toda a família veio cá a casa. O Bolota correu entre as pernas dos netos e até o Miguel sorriu ao vê-lo tão feliz.

Ao olhar para todos à mesa — filhos, netos, nora — percebi que a solidão nunca desaparece completamente; apenas muda de forma.

Agora pergunto-me: quantas vezes deixamos o medo impedir-nos de aceitar gestos de amor? E será que alguma vez estamos verdadeiramente preparados para recomeçar?