Avô, Porque Não Queres Que Vivamos Melhor?
“Avô, porque não queres que vivamos melhor?”
O silêncio caiu na sala como uma pedra atirada ao fundo de um poço. A voz da Leonor, a minha neta de oito anos, ecoava-me nos ouvidos, misturada com a inocência e a dor de quem não compreende o mundo dos adultos. Olhei para ela, sentada no tapete, com os olhos grandes e castanhos fixos nos meus. A minha filha, Mariana, desviou o olhar para a janela, apertando os lábios para não chorar. O meu genro, Rui, fingia ler o jornal, mas as mãos tremiam-lhe.
“Leonor, não é assim tão simples…” tentei responder, mas a voz saiu-me rouca, quase um sussurro. O que podia eu dizer? Que o dinheiro que me pediam era o pouco que me restava da reforma? Que a casa onde vivia era o último refúgio de uma vida inteira de trabalho e sacrifício? Ou que havia segredos que nunca lhes contei?
A verdade é que nos últimos meses a minha vida tinha-se tornado um ciclo vicioso de chamadas telefónicas e pedidos de ajuda. Mariana ligava-me quase todos os dias: “Pai, podes emprestar-nos algum dinheiro este mês? O Rui perdeu o emprego outra vez… A Leonor precisa de material para a escola… O gás acabou…”
Eu queria ajudar. Juro que queria. Mas cada vez que abria a carteira sentia um aperto no coração. O medo de não ter para mim, de perder tudo o que construí com as minhas próprias mãos. E depois havia aquela carta antiga, escondida no fundo da gaveta do meu quarto, que me lembrava todos os dias do erro que cometi há trinta anos.
Lembro-me bem do dia em que tudo começou a desmoronar. Era uma tarde chuvosa de novembro. Mariana apareceu à porta com as malas na mão e a Leonor ao colo. “O Rui foi despedido. Não temos para onde ir.”
Recebi-as em casa, claro. Sou pai antes de tudo. Mas o Rui veio atrás delas dois dias depois, cabisbaixo e derrotado. Nunca gostei muito dele – sempre achei que era um homem fraco, sem ambição. Mas era o pai da minha neta e o marido da minha filha.
Os dias passaram-se entre discussões baixas à mesa do jantar e silêncios pesados nos corredores. Mariana chorava à noite no quarto antigo dela, agora partilhado com o Rui e a Leonor. Eu ouvia tudo através das paredes finas da casa velha em Vila Nova de Gaia.
Uma noite, ouvi-os discutir:
— Não posso mais viver assim! — gritava Mariana.
— Achas que eu quero? — respondia Rui, num tom cansado.
— O meu pai não nos vai ajudar para sempre!
— Ele tem dinheiro guardado! Porque não nos dá?
Fingi dormir quando bateram à porta do meu quarto. Mariana entrou de olhos vermelhos:
— Pai… precisamos mesmo da tua ajuda. Só até o Rui arranjar trabalho.
Olhei para ela e vi a menina que criei sozinha depois que a mãe morreu. Vi o medo nos olhos dela, a vergonha de pedir ao próprio pai.
— Mariana… eu já vos dei tudo o que podia — disse-lhe baixinho. — Não posso dar mais sem perder a casa.
Ela chorou baixinho no meu ombro. Senti-me um monstro.
No dia seguinte, fui ao banco levantar algum dinheiro das poupanças. O gerente olhou-me com pena:
— Sr. António, tem mesmo a certeza? Isto é quase tudo o que lhe resta…
Assinei os papéis com as mãos trémulas.
Quando cheguei a casa, entreguei-lhes o envelope com as notas. Mariana abraçou-me com força. Rui agradeceu-me em silêncio.
Mas nada mudou. O dinheiro desapareceu em contas atrasadas e despesas inesperadas. O desespero voltou ainda mais forte.
Foi então que a Leonor me fez aquela pergunta.
“Avô, porque não queres que vivamos melhor?”
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim – não contra ela, mas contra mim próprio, contra o destino, contra todas as escolhas erradas que fiz na vida.
Naquela noite não dormi. Fui buscar a carta à gaveta e reli-a pela centésima vez.
Era uma carta do meu irmão mais novo, Manuel. Escreveu-ma pouco antes de morrer num acidente de carro há trinta anos:
“António,
Sei que nunca me vais perdoar pelo que fiz ao pai. Mas quero que saibas que te deixei metade do dinheiro da venda da quinta. Usa-o bem – para ti e para a tua família.”
Nunca contei à Mariana sobre aquele dinheiro sujo – dinheiro ganho à custa de uma traição familiar antiga. Usei-o para comprar esta casa e garantir um futuro melhor para ela… mas sempre vivi com medo de perder tudo se a verdade viesse ao de cima.
Agora estava velho, cansado e sozinho com os meus fantasmas.
No dia seguinte, sentei-me com Mariana e Rui à mesa da cozinha.
— Temos de falar — disse-lhes.
Eles olharam para mim assustados.
— Não posso continuar a sustentar-vos assim. Já não tenho mais para dar…
Mariana começou a chorar.
— Pai… vamos para onde? Não temos nada!
Rui levantou-se abruptamente:
— Isto é culpa tua! Sempre foste egoísta! Nunca aceitaste a minha presença nesta família!
Levantei-me também, sentindo o sangue ferver-me nas veias:
— Egoísta?! Dei-vos tudo! Até o que não devia! Sabes lá tu o que é sacrificar uma vida inteira pelos outros!
Leonor entrou na cozinha nesse momento, assustada com os gritos.
— Por favor… não se zanguem — pediu baixinho.
O silêncio caiu outra vez.
Naquela noite decidi sair de casa e caminhar pelas ruas molhadas do bairro antigo. Senti o cheiro da terra húmida e ouvi os cães ladrar ao longe. Pensei em tudo o que tinha perdido: amigos, irmãos, sonhos… E percebi que estava preso ao passado, incapaz de perdoar ou ser perdoado.
Quando voltei para casa já era madrugada. Encontrei Mariana sentada na sala à minha espera.
— Pai… desculpa — disse ela baixinho. — Eu só queria proteger a Leonor…
Sentei-me ao lado dela e abracei-a como quando era pequena.
— Eu também só queria proteger-te — respondi-lhe.
No dia seguinte procurei ajuda na Junta de Freguesia. Falei com a assistente social sobre a situação deles. Ela prometeu ajudar com um subsídio temporário e procurar emprego para o Rui.
As semanas passaram devagarinho. Rui arranjou trabalho numa oficina local; Mariana começou a fazer limpezas em casas vizinhas; Leonor voltou a sorrir aos poucos.
Eu continuei sozinho na minha casa velha, mas sentia-me mais leve por dentro – como se finalmente tivesse deixado cair um fardo antigo.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será que fiz bem em esconder-lhes a verdade durante tantos anos? Será que os protegi… ou só lhes roubei a oportunidade de aprenderem a lutar sozinhos?
E vocês? Acham que devemos contar todos os nossos segredos à família ou há coisas que é melhor guardar para sempre?