Assinei o Carro do Meu Irmão em Meu Nome. Agora, Estou Afundada em Dívidas e Mágoas

— Ana, por favor, só preciso que assines estes papéis. É só até isto acalmar com a Sílvia. — A voz do Rui tremia, os olhos vermelhos de noites mal dormidas. O meu irmão mais novo sempre foi impulsivo, mas nunca o tinha visto assim: derrotado, encostado à parede pela vida.

Olhei para os documentos: registo de propriedade, seguro, tudo em meu nome. O carro dele, um Renault Clio já com uns anos, era a única coisa de valor que lhe restava depois de meses de discussões e ameaças de tribunal. Sílvia, a ex-mulher, queria tudo. Até as fotografias antigas da nossa infância ela reclamava como “memórias partilhadas”.

— Rui, não sei… Isto pode dar problemas. E se acontece alguma coisa? — tentei argumentar, mas ele já estava a empurrar-me a caneta para a mão.

— Confia em mim, mana. Eu trato de tudo. Só preciso que isto não fique no meu nome até o divórcio sair. Depois voltamos a pôr como estava.

Assinei. O gesto parecia pequeno perante o desespero dele. E, no fundo, sempre fui aquela irmã mais velha que tenta proteger o Rui das asneiras dele.

Durante semanas, nada aconteceu. O carro continuava com ele, eu recebia as cartas do seguro e do IMT e ia guardando numa gaveta. Até ao dia em que chegou uma carta registada: uma multa por excesso de velocidade na A1. Liguei-lhe imediatamente.

— Rui, foste apanhado a 160 na autoestrada? — perguntei, tentando manter a calma.

— Foi só uma vez! Estava atrasado para uma entrevista… Eu pago isso, prometo.

Mas não pagou. Nem essa, nem as seguintes. Em poucos meses, acumulei três multas e um aviso de penhora por falta de pagamento do imposto único de circulação. O seguro também estava em atraso. Liguei-lhe vezes sem conta.

— Rui, isto está tudo em meu nome! Se não pagas, sou eu que fico com o nome sujo!

— Eu trato disso esta semana, juro! — dizia ele sempre, mas as semanas passavam e nada mudava.

A minha mãe começou a notar o meu nervosismo. Uma noite, depois do jantar, sentou-se ao meu lado na sala.

— Ana, o que se passa contigo e com o teu irmão? — perguntou baixinho.

Desabei. Contei-lhe tudo: as multas, as cartas ameaçadoras da Autoridade Tributária, o medo de perder o pouco que tinha por causa de uma decisão impensada.

— Sempre foste tu a resolver os problemas dele… — suspirou ela. — Mas agora tens de pensar em ti também.

O Rui começou a evitar-me. Não atendia chamadas, não respondia a mensagens. Só soube dele quando um amigo comum me disse que ele estava a dormir no sofá de alguém em Lisboa, sem trabalho fixo e cada vez mais perdido.

Entretanto, recebi uma notificação para ir ao tribunal explicar porque é que não tinha pago as dívidas associadas ao carro. Senti-me humilhada: uma mulher adulta, trabalhadora, sem dívidas até então, agora sentada diante de um juiz a tentar explicar um favor familiar que correu mal.

No final da audiência, saí para a rua com lágrimas nos olhos. O telefone tocou: era o Rui.

— Desculpa, mana… Eu estraguei tudo. Não sei como te vou pagar isto…

— Não é só o dinheiro, Rui! É a confiança! Como é que me meteste nisto? — gritei-lhe ao telefone no meio da rua.

Houve silêncio do outro lado. Depois ouvi-o soluçar.

— Eu não queria… Só pensei que era temporário… Achei que ia conseguir resolver tudo…

Nesse momento percebi: o Rui nunca tinha aprendido a lidar com consequências porque sempre houve alguém — eu — a ampará-lo. E agora eu é que estava a pagar o preço.

Durante meses tentei negociar as dívidas com o banco e com as finanças. Tive de pedir um empréstimo para não ficar com o ordenado penhorado. O carro acabou apreendido por falta de pagamento do seguro e do imposto. O Rui desapareceu durante quase um ano.

A família dividiu-se: uns achavam que eu devia perdoá-lo porque “é sangue do teu sangue”, outros diziam que era altura de cortar relações até ele crescer.

No Natal seguinte, apareceu em casa dos meus pais: magro, cansado, mas com um ar humilde que nunca lhe tinha visto antes. Sentou-se ao meu lado à mesa e ficou calado durante quase toda a refeição.

No fim, quando todos já estavam na sala a ver televisão, aproximou-se:

— Ana… Eu sei que não tenho desculpa. Mas queria pedir-te perdão. E queria começar a pagar-te aos poucos… Arranjei trabalho numa oficina.

Olhei para ele e vi o miúdo que eu costumava levar à escola pela mão. O mesmo olhar assustado de quem sabe que fez asneira mas precisa de alguém que lhe mostre o caminho.

— Não quero dinheiro agora, Rui. Quero respeito. Quero saber que posso confiar em ti outra vez.

Ele assentiu em silêncio.

Hoje ainda estou a pagar parte das dívidas daquele carro maldito. O Rui está melhor: trabalha e paga-me todos os meses uma pequena quantia. A relação nunca voltou a ser igual — há feridas que demoram muito tempo a sarar.

Às vezes pergunto-me: até onde devemos ir por quem amamos? E quando é que ajudar se transforma em permitir? Será que algum dia conseguimos mesmo perdoar quem nos magoa tanto?