“Assim será melhor para todos”: O dia em que o meu marido decidiu acabar com a nossa família
— Maria, precisamos de falar. — A voz do Rui soou baixa, quase um sussurro, mas cortou o silêncio da cozinha como uma faca. Eu estava a arrumar os pratos do jantar, os mesmos pratos que usávamos desde o nosso casamento, e senti as mãos tremerem. Não era a primeira vez que ele dizia isto, mas havia algo diferente no tom dele.
— Agora? — perguntei, tentando esconder o medo na minha voz. O nosso filho, o Tiago, estava no quarto a estudar para os exames nacionais. Não queria que ele ouvisse nada.
O Rui sentou-se à mesa, cruzou as mãos e olhou para mim com aquele olhar distante que se tinha tornado tão frequente nos últimos meses. — Assim será melhor para todos — disse ele, sem levantar a voz, sem hesitar.
Fiquei ali parada, com um prato na mão, sem saber se devia atirá-lo ao chão ou simplesmente deixá-lo cair. O que é que ele queria dizer com aquilo? Melhor para quem? Para mim? Para ele? Para o Tiago?
— Estás a falar a sério? — perguntei, sentindo o coração a bater tão forte que quase não conseguia ouvir as minhas próprias palavras.
Ele assentiu. — Já não somos felizes, Maria. Estamos só a fingir. E eu não aguento mais esta rotina… esta distância.
Sentei-me à frente dele. O cheiro do detergente misturava-se com o aroma do café frio na mesa. Tentei lembrar-me da última vez que tínhamos rido juntos, da última vez que me tinha sentido amada por ele. Não consegui.
— E o Tiago? Já pensaste nele? — A minha voz saiu mais alta do que queria.
O Rui suspirou. — O Tiago é forte. Vai perceber. É melhor para ele também do que viver nesta casa cheia de silêncios e discussões veladas.
Eu queria gritar, queria chorar, mas fiquei ali, imóvel. Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Como é que ele podia decidir isto sozinho? Como é que podia achar que estava a fazer-nos um favor?
Naquela noite não dormi. Fiquei deitada ao lado dele, cada um virado para o seu lado da cama, como dois estranhos presos pela memória do que já fomos. Ouvi-o respirar fundo, ouvi-o virar-se na cama, mas não houve toque, não houve palavras.
No dia seguinte, tentei agir normalmente. Preparei o pequeno-almoço para o Tiago, desejei-lhe boa sorte para o exame e sorri como se nada tivesse acontecido. Mas ele olhou para mim com aqueles olhos castanhos tão parecidos com os do pai e perguntou:
— Mãe, está tudo bem?
Quis mentir-lhe, dizer que sim, mas não consegui. Limitei-me a abraçá-lo com força.
O Rui saiu cedo para o trabalho e deixou-me sozinha com os meus pensamentos. Liguei à minha irmã, a Ana, que vive em Braga.
— Ele quer separar-se — disse-lhe assim que atendeu.
Do outro lado ouvi um suspiro pesado.
— Já desconfiava… Vocês andam tão distantes…
— Achas que a culpa é minha? — perguntei, sentindo as lágrimas finalmente caírem.
— Não digas disparates! — respondeu ela. — Mas sabes como são os homens… fogem quando as coisas ficam difíceis.
Passei os dias seguintes num estado de torpor. Ia trabalhar no centro de saúde de Vila Nova de Gaia como se fosse um autómato. Os colegas olhavam para mim com pena quando pensavam que eu não via. A minha chefe chamou-me ao gabinete:
— Maria, se precisares de uns dias…
Abanei a cabeça. Precisava de rotina para não enlouquecer.
Em casa, o ambiente era insuportável. O Rui evitava-me, passava horas no telemóvel ou saía para correr à beira-rio. O Tiago fechava-se no quarto com os auscultadores nos ouvidos.
Uma noite ouvi-os a discutir:
— Não podes simplesmente ir embora! — gritou o Tiago.
— Eu não vou embora de ti! Só vou sair desta casa…
— É a mesma coisa! — respondeu o Tiago antes de bater com a porta.
Senti-me esmagada entre os dois homens da minha vida e incapaz de ajudar qualquer um deles.
Os meus pais vieram de Viseu tentar ajudar. A minha mãe passou horas a falar comigo na cozinha:
— Mariazinha, tens de ser forte. Os homens mudam… mas tu tens de pensar em ti e no teu filho.
O meu pai limitava-se a abanar a cabeça e a murmurar: — No meu tempo isto não acontecia…
A verdade é que eu também nunca pensei que isto me pudesse acontecer. Sempre fui aquela mulher certinha: casei cedo, tive um filho exemplar, trabalhei toda a vida para dar estabilidade à família. E agora? Agora era só mais uma mulher abandonada aos quarenta e sete anos.
Comecei a questionar tudo: teria sido demasiado exigente? Teria deixado de ser interessante? Teria sido demasiado mãe e pouco mulher?
Uma tarde encontrei uma mensagem no telemóvel do Rui: “Quando vais contar-lhe?” Era da Marta, uma colega dele do escritório em Matosinhos. Senti um gelo percorrer-me o corpo inteiro.
Esperei por ele nessa noite:
— Há quanto tempo? — perguntei assim que entrou em casa.
Ele ficou pálido. — Não é o que pensas…
— Não mintas mais! — gritei pela primeira vez em meses.
Ele sentou-se no sofá e passou as mãos pelo rosto.
— Começou há uns meses… mas não foi por isso que decidi separar-me. Já estávamos mal há muito tempo…
Senti-me humilhada e traída. Como é que eu não vi? Como é que ninguém me avisou?
A Ana veio passar uns dias comigo. Levou-me ao cabeleireiro, obrigou-me a sair para jantar fora. Uma noite bebemos vinho demais e ela disse:
— Ele não te merece! Vais ver que ainda vais ser feliz outra vez.
Mas eu não conseguia acreditar nisso. Sentia-me velha, usada, descartável.
O Tiago começou a ter más notas na escola. Chamaram-me à escola:
— O seu filho está muito distraído… — disse a diretora de turma.
Expliquei-lhe por alto o que se passava em casa. Ela assentiu com compreensão:
— É importante que ele sinta que tem apoio dos dois pais.
Mas como? Se eu própria mal me aguentava?
Os meses passaram devagar. O Rui saiu de casa numa tarde chuvosa de março. Levou apenas uma mala e deixou as chaves em cima da mesa da cozinha.
O silêncio depois da porta bater foi ensurdecedor.
Tive de aprender tudo outra vez: pagar contas sozinha, lidar com as avarias da casa, consolar o Tiago nas noites em que chorava baixinho no quarto ao lado.
Houve dias em que pensei desistir de tudo. Em que me sentei no chão da casa de banho e chorei até não ter mais lágrimas.
Mas também houve pequenos momentos de esperança: um passeio à beira-mar com a Ana; um sorriso do Tiago quando lhe fiz o prato favorito; uma colega do centro de saúde que me convidou para ir ao teatro.
Comecei a perceber que talvez houvesse vida depois do Rui. Que talvez eu pudesse voltar a ser feliz – diferente, mas feliz.
Hoje olho para trás e vejo tudo como se fosse um filme antigo: as discussões abafadas, os silêncios pesados, as noites sem sono.
Pergunto-me muitas vezes: será que alguma vez fui suficiente? Será que podia ter feito algo diferente? Ou será simplesmente assim a vida – feita de recomeços forçados?
E vocês? Já sentiram esse vazio depois de perderem alguém? Como se volta a acreditar em nós próprios depois de uma traição?