As Visitas do Meu Sogro: O Silêncio Que Destruiu o Nosso Lar
— Vais mesmo fazer isso outra vez, Mariana? — perguntei, tentando manter a voz baixa, mas sentindo o nó apertado na garganta. Ela estava de costas para mim, a arrumar a loiça na cozinha, como se não tivesse ouvido. Mas eu sabia que ela tinha. Sabia porque, nos últimos meses, cada palavra minha parecia ecoar no vazio, como se a nossa casa tivesse paredes de vidro e tudo o que eu dissesse se partisse antes de chegar até ela.
Seis meses antes, tínhamos decidido mudar-nos para Coimbra. Era uma oportunidade: um emprego novo para mim numa pequena empresa de informática, e para ela, a possibilidade de recomeçar como professora numa escola secundária. Deixámos para trás a azáfama de Sintra, os cafés onde nos conhecemos, e até os vizinhos que já eram quase família. No início, tudo parecia promissor. Tínhamos tempo um para o outro, jantávamos juntos, ríamos das pequenas desventuras do dia. Mas, de repente, tudo mudou.
O meu sogro, o senhor António, começou a aparecer cada vez mais. Primeiro, era uma visita ao fim de semana. Depois, duas vezes por semana. Quando dei por mim, ele estava lá quase todos os dias, sentado no nosso sofá, a comentar o noticiário, a criticar o trânsito, a perguntar se já tínhamos pago a conta da luz. Eu tentava ser educado, mas sentia-me cada vez mais sufocado.
— O teu pai não tem a própria casa? — arrisquei um dia, num tom que tentei tornar leve, mas que saiu mais amargo do que queria.
Mariana virou-se para mim, olhos frios. — Ele sente-se sozinho. Desde que a mãe morreu, sabes bem como ele ficou. Não custa nada tê-lo aqui.
Mas custava. Custava-me a mim, custava-nos a nós. O silêncio entre nós começou a crescer. Já não falávamos das pequenas coisas. Já não ríamos. O senhor António ocupava o nosso espaço, a nossa rotina, e até os nossos silêncios. Eu chegava a casa e encontrava-o a ver futebol, a beber o meu vinho, a perguntar se eu já tinha arranjado o cano da casa de banho.
Uma noite, depois de mais uma discussão abafada, sentei-me na varanda, a olhar para as luzes da cidade. O frio entrava-me pelos ossos, mas não me importava. Lembrei-me da primeira vez que conheci o senhor António, no almoço de Natal em casa dos pais da Mariana. Ele tinha-me apertado a mão com força, olhado nos olhos e dito: “Cuida bem dela.” Na altura, achei que era só um aviso paternal. Agora, parecia uma ameaça.
As semanas passaram. O senhor António começou a trazer roupa para lavar, a deixar livros espalhados pela sala, a sugerir que mudássemos os móveis de sítio. Uma vez, entrou no nosso quarto sem bater, à procura do comando da televisão. Senti o sangue ferver-me nas veias.
— Isto não pode continuar assim, Mariana. — Disse-lhe uma noite, quando finalmente ficámos sozinhos.
Ela suspirou, cansada. — O que queres que eu faça? É o meu pai.
— E eu? Não sou nada? Não temos direito à nossa vida?
Ela não respondeu. Virou-se para o lado na cama e ficou em silêncio. O silêncio tornou-se o nosso idioma. Eu falava, ela calava. Eu tentava, ela desistia. Comecei a chegar mais tarde a casa, a inventar reuniões, a procurar desculpas para não estar ali. Sentia-me um estranho na minha própria casa.
Um sábado, cheguei e encontrei o senhor António a cozinhar na nossa cozinha. O cheiro a bacalhau enchia o ar. Mariana ria-se, ajudando-o a cortar cebolas. Senti-me um intruso. Sentei-me à mesa, tentei participar, mas cada palavra minha parecia deslocada, como se fosse um convidado de passagem.
Depois do jantar, o senhor António ficou a dormir no sofá. Eu e Mariana discutimos baixinho na casa de banho.
— Não aguento mais, Mariana. Isto não é normal.
— Ele não tem para onde ir! — gritou ela, finalmente. — Achas que eu gosto disto? Achas que não sinto a tua distância? Mas ele é meu pai!
— E eu? — perguntei, quase a chorar. — Eu sou teu marido!
Ela chorou também, mas não me abraçou. Ficámos ali, dois estranhos, separados por uma dor que não sabíamos como curar.
Os dias seguintes foram um tormento. O senhor António começou a fazer planos para “ajudar” na casa. Queria pintar as paredes, trocar as cortinas, comprar um novo tapete. Mariana aceitava tudo, sem discutir. Eu sentia-me cada vez mais pequeno, cada vez mais inútil.
Uma noite, depois de mais uma discussão, saí de casa e fui dar uma volta pela cidade. Sentei-me num banco do Jardim da Sereia e chorei. Chorei como há muito não chorava. Senti-me sozinho, traído, perdido.
No dia seguinte, tentei falar com Mariana pela última vez.
— Mariana, precisamos de ajuda. Não podemos continuar assim. Vamos falar com alguém, um terapeuta, um padre, o que for.
Ela olhou para mim, olhos vermelhos de tanto chorar.
— Não sei se consigo, João. Não sei se ainda somos nós.
O senhor António continuou a visitar-nos. Eu continuei a afastar-me. Um dia, Mariana fez as malas e foi passar uns dias com ele. Disse que precisava de espaço. Fiquei sozinho em casa, rodeado pelo cheiro do bacalhau, pelas marcas dos sapatos dele no tapete, pelo eco do silêncio.
Agora, escrevo isto sem saber se ela vai voltar. Pergunto-me onde foi que errámos, se poderia ter feito mais, se deveria ter sido mais paciente ou mais firme. Pergunto-me quantas famílias se desfazem assim, não por falta de amor, mas por falta de espaço para respirar.
Será que o amor resiste quando deixamos de ser ouvidos? Será que é possível reconstruir o que foi destruído pelo silêncio? O que fariam vocês no meu lugar?