As Verdades Não Ditas de um Casamento Perfeito
— Não aguento mais fingir, Sílvia. — A voz da Marta tremia, abafada pelo corredor, mas clara o suficiente para me gelar o sangue. — O Samuel está cada vez mais distante, e eu… eu sinto que já não sou eu nesta casa.
Fiquei parado, com a mão ainda na maçaneta da porta da sala. O eco das palavras dela misturava-se com o tic-tac do relógio antigo do meu pai, agora herdado por mim. O Natal tinha passado há poucos dias, mas as luzes penduradas na varanda pareciam zombar da minha tristeza. Desde que o meu pai morreu, tudo perdeu cor. E agora, a minha mulher, a Marta, confessava à irmã um segredo que eu nunca suspeitei.
— Mas tu falaste com ele? — perguntou Sílvia, num sussurro urgente.
— Já tentei… mas ele só fala do trabalho ou do pai. Parece que não há espaço para mim. — A voz dela quebrou-se num soluço.
Senti-me pequeno. Tão pequeno como quando era criança e via os meus pais discutir baixinho na cozinha, pensando que eu dormia. O peso do luto misturava-se agora com uma culpa nova: será que falhei como marido?
Voltei para a sala sem fazer barulho. Sentei-me no sofá, olhando para o retrato do meu pai na estante. Ele sorria, como sempre sorria nas fotografias. O homem que me ensinou a ser forte, a nunca mostrar fraqueza. Mas agora eu era só fraqueza.
Marta entrou pouco depois, os olhos vermelhos. Fingiu um sorriso.
— Está tudo bem? — perguntou ela, sentando-se ao meu lado.
Quis perguntar-lhe o que se passava, mas as palavras ficaram presas na garganta. Em vez disso, limitei-me a acenar com a cabeça.
— Estou cansado — murmurei.
Ela pousou a mão na minha perna, mas senti-a distante. Como se fosse uma estranha.
Os dias seguintes arrastaram-se em silêncio. Eu ia trabalhar cedo e voltava tarde. Marta passava mais tempo com Sílvia ou com amigas. À noite, deitávamo-nos de costas voltadas. O vazio entre nós era tão grande como o vazio que o meu pai deixou.
Uma noite, acordei com vozes baixas na cozinha. Levantei-me devagar e ouvi Marta ao telefone.
— Eu não posso continuar assim… Ele não repara em mim há meses. Sinto-me invisível nesta casa.
Oiço um suspiro do outro lado da linha — devia ser Sílvia outra vez.
— Já pensaste em sair? — pergunta ela.
O meu coração parou por um segundo. Marta hesitou.
— Não sei… Tenho medo de magoá-lo ainda mais. Ele já perdeu tanto…
Voltei para o quarto sem ser visto. Passei o resto da noite acordado, a olhar para o teto. A minha cabeça era um turbilhão de perguntas: Quando é que tudo mudou? Será que alguma vez fomos felizes ou só fingimos para agradar aos outros?
No dia seguinte, decidi falar com ela. Esperei até ao jantar, quando finalmente estávamos sozinhos.
— Marta… precisamos de conversar.
Ela pousou os talheres devagar e olhou-me nos olhos. Pela primeira vez em meses, vi sinceridade — e medo.
— Eu ouvi-te falar com a Sílvia — confessei. — Sei que não estás feliz… E eu também não estou.
Ela baixou os olhos, as lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto.
— Desculpa… Eu tentei ser forte por ti, por nós… Mas sinto-me perdida desde que o teu pai morreu. Tu fechaste-te no teu mundo e eu fiquei sozinha no nosso.
A dor dela era igual à minha. Percebi então que ambos estávamos a sofrer em silêncio, cada um no seu canto da casa.
— Não quero perder-te — disse eu, quase num sussurro.
Ela abanou a cabeça.
— Eu também não… Mas não sei se conseguimos voltar ao que éramos.
O silêncio caiu entre nós como uma sentença. Ficámos ali sentados, lado a lado, sem saber o que fazer ao amor desfeito pelo tempo e pela dor.
Nos dias seguintes tentámos falar mais, sair juntos, recordar os tempos felizes: os passeios à beira-rio em Lisboa, as tardes de verão na praia da Costa da Caparica, as noites em que ríamos até adormecer. Mas tudo parecia forçado, como se estivéssemos a representar uma peça para uma plateia invisível.
A família começou a notar a distância. A minha mãe perguntava-me sempre se estava tudo bem com Marta; os pais dela olhavam-nos de lado nos almoços de domingo. Até os amigos começaram a afastar-se — ninguém gosta de lidar com casais infelizes.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre coisas pequenas — quem se esqueceu de comprar pão, quem deixou a luz acesa — Marta explodiu:
— Não aguento mais esta vida! Não quero passar os próximos anos presa numa rotina sem amor!
Eu também gritei:
— Achas que é fácil para mim? Achas que não sinto falta do que éramos?
Ela chorou baixinho e saiu de casa. Fiquei sozinho na sala, rodeado pelas memórias do passado: as fotografias do casamento, os bilhetes de viagens antigas, as cartas trocadas quando ainda namorávamos.
Na manhã seguinte ela voltou para buscar algumas roupas. Disse-me que ia ficar uns dias em casa da Sílvia para pensar.
Os dias passaram lentos e cinzentos. O trabalho tornou-se uma fuga; os colegas perguntavam se estava tudo bem e eu respondia sempre “sim”, mesmo quando sentia vontade de gritar “não” ao mundo inteiro.
Uma tarde recebi uma mensagem da Marta: “Podemos conversar?” Marcámos encontro num café discreto no centro de Lisboa.
Ela chegou antes de mim, sentada junto à janela. Parecia mais leve, mas também mais distante.
— Samuel… Eu amo-te. Mas acho que precisamos de tempo para perceber quem somos sem esta dor entre nós.
Concordei em silêncio. Talvez fosse isso mesmo: precisávamos de nos perder para nos reencontrarmos um dia.
Voltámos para casa apenas para dividir as coisas: livros dela, discos meus; quadros comprados juntos; presentes trocados em aniversários passados. Cada objeto era uma ferida aberta.
A família reagiu mal à separação: a minha mãe chorou durante dias; o pai da Marta culpou-me por não ter sabido cuidar dela; Sílvia apoiou sempre a irmã — “Ela merece ser feliz”, dizia ela.
Os meses passaram e aprendi a viver sozinho: cozinhar só para mim, arrumar a casa ao meu ritmo, sair para passear sem destino pelas ruas frias de Lisboa. Às vezes cruzava-me com casais felizes e sentia inveja; outras vezes sentia alívio por já não fingir ser alguém que não era.
Recebi notícias da Marta através de amigos comuns: estava a fazer terapia, começou um curso novo, parecia estar melhor consigo mesma. Fiquei feliz por ela — e triste por nós.
No primeiro aniversário da morte do meu pai fui ao cemitério sozinho. Falei-lhe baixinho:
— Pai… falhei em tudo aquilo que me ensinaste? Ou será que às vezes amar alguém também é saber deixá-lo ir?
Voltei para casa com o coração pesado mas com uma estranha sensação de paz. Talvez fosse esse o segredo das verdades não ditas: aceitar que nem sempre conseguimos salvar tudo aquilo que amamos.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantos casamentos “perfeitos” escondem dores como as nossas? Quantas pessoas vivem presas ao medo de serem sinceras consigo mesmas?
E vocês? Já sentiram esse vazio num amor aparentemente perfeito? Será que vale sempre a pena lutar ou há momentos em que é preciso ter coragem para recomeçar?